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Em 'A Favorita', Yorgos Lanthimos insiste no estranhamento como gesto político

Cineasta grego vale-se do absurdo como motor criativo

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Emma Stone (Abigail) em cena de 'A Favorita'
Emma Stone (Abigail) em cena de 'A Favorita' - Divulgação

Em 2010, no New York Times, o crítico Nicolas Rapold anunciava a estreia de um filme: “Da Grécia, uma Parábola sobre... Alguma Coisa”. A resenha falava de um jovem diretor grego, de sua importância para uma nova geração de cineastas e, claro, dos desafios em decifrar as suas obras. Foi assim, como realizador inclinado a incomodar, que Yorgos Lanthimos —à época com seu segundo longa, "Dente Canino"— apresentou-se ao público internacional.

Nove anos se passaram, Lanthimos estendeu sua fama para além da Grécia e, somados quatro obras ao seu currículo —"Alpes" (2011), "O Lagosta" (2015), "O Sacríficio do Cervo Sagrado" (2017) e agora "A Favorita" (2018)—, o assombro permanece: afinal, a que serve o estranhamento recorrente em seus filmes? Como o absurdo de sua dramaturgia se relaciona com a insistente (e disruptiva) reflexão sobre os valores contemporâneos? E mais: como esta proposta se renova em "A Favorita"?

Primeiro, a trama: Inglaterra, início do século 18. Em guerra com a França, a nação britânica tem em seu trono a rainha Ana (Olivia Colman). De saúde frágil e mentalmente instável, a soberana parece depender de lady Sarah (Rachel Weisz), sua conselheira e amante, para guiar o país. A dinâmica entre as duas —política e afetiva— ganha novas configurações quando Abigail (Emma Stone), prima pobre de Sarah, contratada como serviçal da corte, começa a galgar posições na hierarquia real (e no amor da Rainha).

Em um primeiro momento, esta sinopse parece colocar a obra na categoria dos "filmes de época"; afinal, a narrativa situa suas ações nos bastidores de eventos factuais. As três personagens existiram, assim como a guerra retratada. No entanto, o que estas poucas linhas não revelam é que cada cena de "A Favorita" parece ser construída para negar a precisão histórica: o inglês falado é contemporâneo, com gírias e cacoetes; os temas mobilizados (identidade, gênero...) aquecem os debates atuais; e, em um baile real, um casal dança como se estivesse em um programa de auditório dos anos 2000. 

Assim como no tom monocórdico, quase robotizado, dos personagens de "O Sacrifício do Cervo Sagrado" ou nos gestuais caricatos —em total descompasso com os manuais clássicos de atuação— de "O Lagosta", as liberdades cênicas assumidas em "A Favorita" parecem indicar que a verdadeira preocupação do diretor não é a reconstituição exata do passado, mas justamente o oposto: o primeiro passo para se pensar uma sociedade (ou um filme) talvez dependa da implosão de um jogo das aparências, ao qual, como cidadãos ou espectadores, estamos condicionados.

"A Favorita", nesse aspecto, fornece um paralelo instrutivo: para sobreviver e ascender na corte, a personagem de Emma Stone irá perceber que o jogo político não depende da razão, do melhor argumento ou de virtudes morais, mas, sim, do cinismo, da promoção do medo, da violência como passatempo. Da mesma maneira, nós, como espectadores, também devemos estabelecer com a obra uma postura de distanciamento: suspeitar de um filme e de seu pretenso vínculo com a realidade é romper certa passividade, abrir caminho à dúvida e, uma vez na desconfiança, construir-se como sujeito pensante. 

Não à toa, em entrevista recente ao The Guardian, Lanthimos afirmou a importância das obras de Kafka e Beckett na sua formação. Assim como os dois autores —cada qual à sua maneira—, o cineasta grego vale-se do absurdo como motor criativo. Em uma civilização que se esforça para simplificar e destruir os mistérios do mundo, o desconhecido torna-se apenas ameaça a ser combatida. E nesse cenário, apostar na incompreensão —e construi-la como estranhamento— transforma-se em verdadeiro gesto político.

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