Lado popular da obra de Lina Bo Bardi e Tarsila do Amaral inspira mostras no Masp

Exposições reenquadram as modernistas como faróis de uma vanguarda tropical

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‘Pastoral’, tela de 1927 de Tarsila do Amaral exposta no Masp 
‘Pastoral’, tela de 1927 de Tarsila do Amaral exposta no Masp  - Divulgação
São Paulo

​O popular não é pop. Lina Bo Bardi e Tarsila do Amaral, faróis do pensamento visual do país, são pop. Mas o popular em suas obras, aquilo que o contorcionismo verbal das etiquetas de museu às vezes chama de naïf ou outsider no trabalho de artistas e arquitetos menos famosos, custa a seduzir o establishment.

No mundo resplandecente dos museus de arte, templos de estrutura metálica, pele de vidro e galerias imaculadas, o popular incomoda e causa ruído. É a obra relegada a uma segunda classe estética, aquilo que escapa ao cânone mas chama a atenção pela beleza rude, a "contribuição indigesta, seca, dura" dos nordestinos, pobres, negros e índios, nas palavras de Lina.

Maior desses templos no país, o Masp desenhado pela arquiteta faz agora um esforço duplo para reenquadrar os momentos de desvio de rota do modernismo mais linha-dura na obra dessas mulheres.

Duas exposições no museu da avenida Paulista, uma dedicada à italiana que construiu alguns dos marcos da paisagem urbana de São Paulo e outra com quase cem obras da pintora do "Abaporu", celebram o momento em que elas rejeitaram o que viram e aprenderam na Europa em nome de um contato mais profundo e intenso com as cores e modos de viver do Brasil.

Lina e Tarsila, nesse processo de revisão de leituras fossilizadas na história da arte, estariam aqui mais distantes de Roma e Paris, onde estudaram, e mais perto do sertão e do mar, dois ícones de uma vanguarda tropical que desbravou a terra agreste.

Não é, nesse sentido, a Lina das linhas cristalinas da Casa de Vidro nem a Tarsila das formas roliças e exuberantes do auge do movimento antropofágico, mesmo que tudo isso apareça ali como contraponto às vedetes que são agora as carrancas adoradas por Lina e seu mobiliário popular e as frutas na feira e procissões católicas da roça de Tarsila.

O desafio ao público, aliás, é desviar o olhar das formas consagradas para enxergar com nitidez a beleza e potência dos gestos mais radicais dessas modernistas, aceitando de vez a desconstrução da aura que ao longo do tempo foi se engessando como camisa de força em torno delas.

E não é nada fácil desgrudar os olhos das obras-primas. Repetindo o feito do MoMA em sua retrospectiva da pintora no ano passado, o Masp também reuniu em sua galeria do primeiro andar "Abaporu", "Antropofagia" e "A Negra", espécie de santíssima trindade do modernismo lisérgico de Tarsila. São telas acachapantes, poderosas a ponto de até hoje assombrar a imaginação.

Mais brutal de todas elas, "A Negra", imagem de uma ex-escrava da fazenda da artista no interior paulista, ressurge aqui entre dois autorretratos de Tarsila, abrindo a mostra.

Os lábios enormes, que mal cabem na face animalesca da ama de leite, contrastam com a visão delicada da artista, de um lado usando o famoso vestido vermelho desenhado por seu estilista predileto, Paul Poiret, e do outro só seu rosto maquiado de pó de arroz e emoldurado por longos brincos dourados, ecoando o brilho do batom vermelho vivo.

Fernando Oliva, que organiza a mostra da modernista, lembra que, por mais diferentes que essas telas sejam em tema e estilo, o autorretrato de vestido mostra a mão de Tarsila na mesma posição que pintou a de sua "Negra", reforçando a tese de que a artista buscava algo de sua identidade na imagem da mucama.

Sua representação exagerada da negritude, uma mulher que quase transborda da tela ao mesmo tempo em que parece acuada, seria a porta de entrada de Tarsila para a tal esfera do popular, a pele negra ali mais perto do ocre da terra vermelha da fazenda.

Outras cores, que ela chamava de caipiras e exaltava para o horror do "gosto apurado" da época, vão dominar depois o seu mergulho numa brasilidade fora do radar da fase heroica do modernismo.

O rosa e o azul, em aparições desbotadas e às vezes quase reluzentes, são os alicerces cromáticos de suas cenas do interior, dos singelos altares improvisados nas casas de fazenda de "Religião Brasileira I" e as flores de "Manacá", telas da década de 1920, aos retratos de família que vieram depois, como "O Casamento", "Procissão" e "Costureiras", obras das décadas seguintes.

Mesmo num momento distinto de sua obra, Tarsila não aposenta as tais cores caipiras, mas aplica um geometrismo às cenas, estruturando as composições com um rigor destoante do ar bucólico que plasma nesses quadros, deixando ver a mão de uma artista que nunca abandonou a vanguarda moldando esse seu momento popular.

'Operários', pintura à óleo de Tarsila do Amaral de 1933
'Operários', pintura à óleo de Tarsila do Amaral de 1933, faz parte da seleção de 'Tarsila Popular', no Masp - Acervo Artístico-Cultural dos Palácios do Governo do Estado de São Paulo/Divulgação

Num único desvio mais surpreendente, "Trabalhadores", tela realizada na esteira da famosíssima "Operários" na década de 1930, retrata garimpeiros trabalhando num rio com as mesmas tintas panfletárias do realismo socialista. Seus homens ali são todos negros, um deles em primeiríssimo plano com expressão de angústia estampada no rosto.

Lina parece lembrar esse mesmo universo do trabalho quando falava em "existência tangível, real e utilitária" que deve ser o "verdadeiro caráter da arquitetura". Ela teria descoberto a tal verdade mais ligada ao braçal em solo brasileiro, depois de se libertar da rigidez do modernismo europeu.

"É uma desaprendizagem do moderno", diz Tomás Toledo, um dos organizadores da mostra. "Ela vai deixando de lado o aço, o vidro e assumindo o barro e a palha."

O mexicano José Esparza Chong Cuy, também à frente da exposição, lembra o contraste entre a transparência total e absoluta da Casa de Vidro, uma das primeiras obras da arquiteta construídas no país, e seus últimos projetos, casas que lembram cabanas, fechadas para o lado de fora, quase cavernas.

"Há cada vez menos arquitetura na obra dela. Ela passa a desenhar paisagens, pontos de encontro", afirma Chong Cuy. "Era mais uma arquiteta de dinâmicas sociais do que de formas e edifícios. O que ela fez é consequência da destruição de um velho mundo."


Lina Bo Bardi, Tarsila do Amaral

Masp - av. Paulista, 1.578, tel. (11) 3149-5959. Qua. a dom.: 10h às 18h. Ter.: 10h às 20h. Até 28/7. R$ 40

 

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