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'O Livro dos Prazeres', de Clarice Lispector, vira filme que privilegia olhar feminino

Simone Spoladore interpreta Lóri no longa de Marcela Lordy que será lançado no ano que vem, centenário da escritora

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Rio de Janeiro

A folha avermelhada precisa descer, pousar no ombro da mocinha e, do chão, ser recolhida pelo galã e então entregue a ela. Ali começa um plano-sequência no qual que o casal vai do flerte ao desentendimento —a tônica do relacionamento entre Lóri e Ulisses.

Mas o movimento agitado à beira da lagoa Rodrigo de Freitas acrescenta novas dificuldades às dos personagens de "O Livro dos Prazeres".

A locação para esse dia das filmagens —que vão até o fim desta semana, no Rio de Janeiro— é linda, mas o som de helicópteros decolando e pousando ao lado invade a cena.

Venta e, ao segurar o chapelão, Lóri acaba por tapar demais o rosto. Passantes curiosos sem querer entram em cena olhando para a câmera. E a folha —nem sempre ela cai do jeito certo.

No décimo take, Marcela Lordy decide simplificar o que pode. "Vou aplicar em pós-produção essa folha." Vai cair rodopiando, "bem Hollywood". Mas a história que Lordy escolheu para sua estreia em longas de ficção, após ter feito carreira na assistência de diretores como José Eduardo Belmonte e Walter Salles, não é hollywoodiana.

É de amor, mas um amor construído sobre falhas que só podem ser reparadas cena a cena, sem truque ou técnica.

"Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres", de Clarice Lispector, é a base do filme. No romance, de 1969, Lóri é uma professora na casa dos 30 que não se aprofunda nas suas relações. Conhece e deseja Ulisses, professor de filosofia mais velho, que lhe ensina a viver o amor, dizendo que aguardará até que ela esteja pronta.

A obra, que se passa quase toda dentro do pensamento de Lóri, pareceria inadaptável.

Transformar o fio de trama em roteiro exigiu dez tratamentos, em seis ou sete anos, recorda Lordy, que a partir de certo ponto teve a contribuição da argentina Josefina Trotta —seu filme é uma coprodução com o país vizinho.

Produtora brasileira do filme, Deborah Osborn, da Big Bonsai, diz que "queria muito internacionalizar o filme", mostrar para o mundo esse "imaginário que permeia a gente a vida toda".

O imaginário de Clarice não deixou mais de ser redescoberto no exterior, sobretudo desde que o americano Benjamin Moser lançou "Clarice,".

Na biografia, Moser descreve "Uma Aprendizagem" como "uma espécie de órfão", depois de "A Paixão Segundo G.H.". "Na verdade, artisticamente, superar aquela obra atordoante seria difícil para qualquer escritor", resume.

O resultado, que traz um final feliz, fato raro na obra da escritora, foi considerado menor ou mais fácil —para os padrões claricianos, que não são exatamente a média.

Concebido há quase uma década, o filme de Lordy será lançado no ano que vem. Calhou de ser o centenário de Clarice, lançando holofotes adicionais sobre a produção, que deve ter a companhia nas telas da adaptação de "G.H." feita pelo diretor Luiz Fernando Carvalho.

"O Livro dos Prazeres" privilegia o olhar das mulheres —e são muitas no set— sobre uma história que, já em 1969, tinha no centro o desejo feminino.

Porém, meio século depois, a relação vertical estabelecida entre Lóri e Ulisses não faria sentido. "Ele desce do pedestal, aprende com ela", diz Marcela Lordy, a diretora.

Embora veja a relação do casal como "quase abusiva" —a determinada altura do romance, por exemplo, ele a censura por cortar os cabelos sem pedir permissão—, ela acredita que "Clarice estava discutindo gênero ao colocar Ulisses à espera de Lóri".

O tipo melancólico de Simone Spoladore se mostra perfeito para a esquiva Lóri. Uma mulher inalcançável, diz a atriz, "que se fechou para a dor", ecoando a conclusão do diálogo rodado minutos antes.

Seu par é vivido por Javier Drolas. Conhecido no Brasil por "Medianeras", ele atua pela primeira vez em português e suaviza a arrogância de Ulisses —apesar de no filme ele ser argentino, brinca o ator.

Mas, na visão de Drolas, "um homem já mais velho que nunca se apaixonou, algum problema tem". Seu Ulisses é especialista em Spinoza, para quem "o fim último da filosofia é a felicidade", e é nessa busca que, diz ele, o personagem "se torna mais humano".

Spoladore conta ter sido ela também submissa em outras relações, mesmo se "a mulher contemporânea é diferente". Essa diferença fundamenta o trabalho das roteiristas.

Há nove anos no Brasil, Josefina Trotta diz que Clarice foi das primeiras autoras que leu em português. Nas últimas releituras que fez de "Uma Aprendizagem", sublinhou o que o livro tinha de ação de fato.

Era muito pouco. A saída foi desdobrar o que havia.

A mãe morta de Lóri ganha peso no filme. Está num crochê que a filha desfaz e refaz, como uma Penélope, e num diário encontrado no apartamento herdado —nele as palavras são de Clarice.

Da vida da escritora, vieram outros elementos para compor essa figura, que se torna não só autora mas ancestral de Lóri.

Os alunos se fazem mais presentes, como Otto, filho de Luciana, única amiga de Lóri. Esta, engenheira e taróloga, é a expansão da cartomante citada no livro somente em uma fala da protagonista.

Vivida por Martha Nowill —que, como Spoladore, havia atuado em curtas de Lordy, caso de "Aluga-se", de 2012, do qual foi corroteirista—, Luciana é um contraponto a Lóri.

É, diz Trotta, "uma mãe profissional com defeitos", que não teme se arriscar, à diferença da amiga. Nowill celebra o papel, uma coadjuvante com um destaque que ela reputa incomum no cinema.

Os personagens e situações se construíram a partir da vivência das próprias roteiristas e de mulheres ouvidas no processo.

Ulisses ganha uma sexualidade vista como ambígua; Lóri tem vários amantes —até uma amante.

Todos se tornam, enfim, mais gente, saindo da dimensão "quase sagrada" que, de início, impactou Trotta, como tantos outros, na obra de Clarice.

A jornalista viajou a convite da produção do filme

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