Com drogas e perrengues, festivais brasileiros tentaram recriar Woodstock

Sob ditadura nos anos 1970, hippies organizaram encontros regados a música em diversas partes do país

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Público no Festival de Águas Claras, em 1981, retratado no longa 'O Barato de Iacanga', de Thiago Mattar

Público no Festival de Águas Claras, em 1981, retratado no longa 'O Barato de Iacanga', de Thiago Mattar Irmo Celso /Divulgação

São Paulo

“Eram tonéis de água, não tinha outro lugar para beber. Algum engraçadinho jogou uma pedrinha de ácido”, Marco Polo, vocalista do Ave Sangria, lembra o episódio de 1972, no teatro a céu aberto de Nova Jerusalém, em Pernambuco. “Quando olhei a grama, vi um verde da porra. Percebi que estava viajando. Já tinha fumado, bebido, estava muito doido. Mas teve gente que ficou de bobeira lá.”

Se foi anfetamina, LSD ou outra droga sintética, ninguém vai saber. Aquele evento, a Feira de Música Experimental do Nordeste, reuniu 2.000 malucos da capital pernambucana. Eles dormiram em barracas ou ficaram acordados, segundo o cartaz, “do pôr ao nascer”.

Sem saber o line-up, o Jornal do Commercio dizia só quem não iria tocar —“aqueles que fazem música comercial”. O Ave Sangria —banda seminal do rock psicodélico— fez um show com sua formação ainda embrionária na tal feira.

Mesmo com clima parecido ao do famoso evento americano, o “Woodstock pé-de-breque”, como foi apelidada a festa, não chegou a ter 1% do público da versão dos Estados Unidos, que faz 50 anos agora. Foi em 15 de agosto de 1969, no auge do movimento hippie, que meio milhão de pessoas partiram para o interior de Nova York atrás de três dias de paz, amor e música —de Janis Joplin, Jimi Hendrix, The Who, Jefferson Airplane, Joan Baez, entre outros.

A cultura de grandes festivais ao ar livre já era uma realidade. Em 1967, houve o Monterey Pop, também nos Estados Unidos. Em 1968, foi a vez do Ilha de Wight, no Reino Unido. O Woodstock foi o mais famoso graças ao filme homônimo de 1970, que registrou os shows e o estilo de vida da imensa plateia.

No Brasil, no fim dos anos 1960, a ditadura endurecia a repressão. Foi a época em que Gilberto Gil e Caetano Veloso, presos, tiveram de se exilar.

“Eram os anos mais pesados dos anos de chumbo”, lembra Pena Schmidt, produtor musical e diretor de gravadoras. “Depois do AI-5, quem ainda tinha pudores de censura, de repressão, acabou. Era ‘nós mandamos aqui, chega desse negócio de arte e música’.”

Numa época de menor tráfego de informações, a cultura hippie —estabelecida nos anos 1960— só se popularizou no Brasil no começo da década de 1970. “Todo mundo viu o filme do Woodstock, lembrou como era e tentou reproduzir”, diz Schmidt. “Era meio onírico, um sonho coletivo.”

A ideia envolvia uma fuga dos grandes centros —onde a repressão policial era maior— e busca por um ambiente bucólico —para potencializar o efeitos dos alucinógenos. Os eventos duravam dias, com acampamento, pouco equipamento e música transgressora.

Um ano antes da festa pernambucana, já havia rolado o Festival de Música de Guarapari, no Espírito Santo. Com Milton Nascimento e Novos Baianos, o evento foi quase inviabilizado pelo prefeito de Três Praias e pela polícia, que barrou os hippies no local.

A expectativa era de 50 mil pessoas, mas só um décimo desse público chegou. O que ficou de lembrança foram os pulos de Tony Tornado na plateia.

Em 1973, Pena Schmidt foi à área rural de Cambé, no Paraná, para o “Woodstock pé-vermelho”, ou Festival Colher de Chá. “Era palco de tábua e tronco improvisado no morrinho, um lugar cheio de eucaliptos e o camarim de lona.”

“Foi um mico total. Cem pessoas? Duzentas? Não era muita gente”, diz Schmidt, que era técnico de som dos Mutantes, atração principal do Colher de Chá. “Era uma tribo de pessoas chamadas de mochileiros. Eles andavam por aí de carona e frequentavam esses lugares.”

Quase todas as tentativas brasileiras de reproduzir Woodstock tinham o mesmo clima —banho de rio, mar ou cachoeira, nudez, maconha e entraves com a polícia.

“Eram coisas marginais, contravenção mesmo. Polícia não tolerava”, comenta Schmidt. “Vários ‘dançaram’ porque estavam fumando [maconha].”

Uma das empreitadas mais bem-sucedidas foi o Festival de Águas Claras, em Iacanga, em São Paulo. Leivinha, com 22 anos em 1975, idealizou o encontro e o promoveu no boca a boca. Retratado no documentário “O Barato de Iacanga”, o festival reuniu 10 mil pessoas na primeira edição.

Lá, a polícia foi leve na repressão, mas acabou fazendo um relatório sobre o que   acontecia na fazenda. Isso levou ao cancelamento do festival, que só voltou em 1981, já com alguma fama entre o público.

O Festival de Águas Claras retornou mais organizado  e teve edições até 1984, com shows de Raul Seixas, Alceu Valença, Jards Macalé, Jorge Mautner e Luiz Gonzaga. Até João Gilberto cantou para os cabeludos.

Tuca Borges tinha 16 anos em 1976, quando ficou sabendo do Woodstock paulista. “Não existia internet, mas os fanzines circulavam nos grupos e festas”, diz ele. Naquele ano, o jornalista Nelson Motta se esforçava para criar um Woodstock fluminense. O Som, Sol & Surf, que rendeu documentário homônimo, levou a Saquarema, no Rio de Janeiro, um campeonato de surfe —tendência na época— e shows.

Também rendeu um rombo financeiro a Motta, quando um investidor abandonou o projeto. O mesmo problema levou ao cancelamento da edição de 50 anos do Woodstock, que aconteceria nesta semana nos Estados Unidos com Jay Z e Miley Cyrus, entre outros.

“Era fumo, LSD, álcool, ‘bola’. Misturava tudo e ficava muito doido”, conta Paulo Malta, que tinha 17 anos e era da turma dos surfistas. “Estouraram o portão e invadiram, porque não tinha ingresso. Não tinha água no bar, não tinha pão.”

Do mesmo jeito que em Águas Claras, os hippies chegaram aos montes e esgotaram os estoques de Saquarema —o lugar recebeu o triplo da população de 7.000 habitantes.

Helio Pitanga, diretor de “Som, Sol & Surf”, conta que Rita Lee, a grande estrela, chegou de helicóptero sem ter onde pousar. “O piloto era um cara que passava de teco-teco fazendo anúncio na praia”, ri.

Segundo Pena Schmidt, hoje existem centenas de festivais deste tipo pelo Brasil, do Psicodália, em Santa Catarina, ao Morrostock, no Rio de Grande do Sul. Até mesmo o SWU, que em 2010 e 2011 reuniu artistas como Kanye West e Sonic Youth em Itu, no interior paulista, era tratado como mais um Woodstock brasileiro.

“Existe uma organicidade no formato”, analisa Schmidt. “Não foi uma estratégia de marketing. Aconteceu porque estava maduro, tinha o espírito aventureiro e o mito da liberdade —que vinha dos beatniks e dos hippies. É o que chamam de ‘zeitgeist’.”


Woodstocks Brasileiros

Guarapari (ES), em 1971 A polícia barrou parte do público na entrada. Poucos milhares ficaram para ver shows de Novos Baianos e Tony Tornado

Brejo da Madre de Deus (PE), em 1972 Grupos experimentais do Recife, como o Tamarineira Village (pré-Ave Sangria), tocaram para cerca de 2.000 pessoas

Iacanga (SP), nos anos 1970 e 1980 Mais bem-sucedido, o Festival de Águas Claras durou até os anos 1980, mesmo interrompido pela polícia. Alceu Valença e até João Gilberto tocaram

Saquarema (RJ), em 1976 Rita Lee e Raul Seixas cantaram para mais de 20 mil pessoas no Som, Sol & Surf, que aconteceu na praia 

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