Descrição de chapéu

Patricio Bisso marcou a cultura underground paulistana dos anos 1980

Vivemos tempos em que o falso bom comportamento parece estar vencendo, e nosso riso parece só ser despertado por velhos clichês

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“As monas passam, só Picasso dura.” O verso, criado e cantado por Patricio Bisso —um modestíssimo “succès de scandale” nos idos dos anos 1980— seria talvez o perfeito epitáfio para o artista que morreu esta semana. Tem humor, inteligência, brinca com alta e baixa cultura, e para quem se lembra de suas performances impagáveis tem ainda outra marca inesquecível do artista: seu sotaque portenho. 

Perdi a conta de quantas vezes assisti à “Louca pelo Saxofone”, no Sesc Pompeia. Sim, nos tais anos 1980. Não me lembro de ter ido à estreia, mas depois de ver pela primeira vez, passei a vê-lo todas as sextas-feiras. Sabia as músicas de cor, menos por uma repetição mecânica do que pelo fascínio que suas performances provocavam. 

Nem todas as canções eram originais. “Louca pelo Saxofone” mesclava suas criações com versões que misturavam na medida certa uma tradução da letra original com adaptações perfeitas ao humor brasileiro —e isso porque ele era argentino!  

No primeiro grupo, além de “Picasso”, além da música que dava nome ao show, além de uma obra-prima perdida do rock de protesto (“Hippie”), Bisso captou também o pretensioso cenário vanguardista daquela década com a precisa (e hilária) “Sou Moderna”: “Vejo filmes da nouvelle vague. Vou passear à noite ao Peg-Pag”!  

No segundo, o das versões, ele revisitou o rock brasileiro que ainda engatinhava (“Eu não Tenho Namorado”) e conseguiu superar um clássicos dos anos 60, “It’s my Party”, de Lesley Gore, cantando: “Bela festa, foi a minha festa, começou na quarta e acabou na sexta... nem posso lembrar do que aconteceu”. 

Acompanhada pelos Boko Mokos (banda “moderna”!) e pelas Notas Pretas —suas impecáveis “backing vocals”— Bisso marcou a cultura “underground” paulistana naquele exato momento em que ela estava começando a ficar “overground”. Só lembrando, foi esse mesmo Bisso “alternativo” que, com sua contribuição ao grande filme de Hector Babenco, “O Beijo da Mulher Aranha”, encostou na noite do Oscar... 

Por isso volto sempre a “Louca pelo Saxofone”. Se quem viu uma vez ficou marcado para sempre, imagina quem sentava na primeira fila toda semana...  

Percebo que escrevi alguns parágrafos para falar apenas de um de seus trabalhos. O que me faz pensar que talvez precisasse de páginas inteiras de um jornal convencional para descrever o fascínio do conjunto da sua obra —do frisson de vê-lo correndo com um vestido que evocava Scarlett O’Hara (de “...E o vento Levou”), no curta “Idos com o Vento”, hoje uma raridade, às aparições de Olga del Volga, sua personagem mais conhecida, nos palcos e nas TVs do Brasil. 

Sexóloga, criada numa época em que a especialização ainda tentava ser levada a sério, Olga soltava opiniões bem pouco ortodoxas sobre tudo —como a que, retrucando um Fausto Silva recém-contratado pela TV Globo, numa cobertura de Carnaval que Bisso fazia para a TV Manchete, definiu bem a maior festa popular do Brasil: “É uma época do ano em que as pessoas põem pra fora o que deveria ficar pra dentro”. E Fausto assina dizendo que ele deveria ter um programa de TV. 

No entanto, se isso não aconteceu nos “loucos anos 1980”, as chances de isso virar realidade foram diminuindo na proporção em que toda nossa cultura foi encaretando. Artistas como Bisso nunca deixaram de aparecer —estão por aí, nos divertindo e renovando a esperança de que humor e inteligência são sim uma mistura possível. Ainda mais com irreverência. O que nós perdemos foi o espaço para eles brilharem. Nesse sentido, o excelente filme “Hebe”, onde Olga del Volga faz uma “ponta” é uma triste lembrança disso. 

Vivemos tempos em que o falso bom comportamento parece estar vencendo, a ousadia rima com baixaria e nosso riso parece só ser despertado por velhos clichês. Se as coisas tivessem sido diferentes, se Patrício Bisso não tivesse saído do Brasil por ter cometido um “ato indecente”, se a saúde lhe tivesse permitido, talvez ele seguisse por mais um tempo nos divertindo —com seus desenhos, personagens, versões, criações, performances, ideias e até entrevistas— mais artistas como ele povoariam nosso cenário. E tudo podia ser mais engraçado. 

Num dos últimos espetáculos de Bisso que vi, se a memória não me engana, era a própria Olga del Volga que, ao evocar sua infância, recordava-se de uma casinha idílica que morava quando pequena e suspirava (com o inevitável sotaque): “buchão de gás... quantas lembranças!”.  

Agora essas lembranças são nossas, seus fãs, admiradores, ou qualquer criatura que Patricio Bisso tenha tocado com seu talento. E seu atrevimento. E é por isso mesmo que insisto que a melhor maneira de celebrar sua vida e seu trabalho é cantando “Picasso” –que na pré-história do videoclipe brasileiro ganhou uma versão dirigida por um certo garoto que um dia também chegaria perto do Oscar com um filme chamado “Cidade de Deus”.

Longa vida aos amantes da artes que podem rir até hoje, graças a essa pareceria de Bisso com Fernando Meirelles, da colecionadora que repete (e insiste): “Não sei o que faço, preciso de um marchand que tenho um belo Picasso”.

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