Escrever sobre “Encontro com a Morte” é uma questão autobiográfica.
Não que eu tenha tido esse encontro, mas o livro de Agatha Christie, publicado em 1938, foi o primeiro da autora que eu li na juventude.
Dizer que foi amor à primeira vista seria um eufemismo. Eu, que sempre considerei Sherlock Holmes a quintessência do detetive (ainda considero, devo confessar), era obrigado a fazer uma vênia respeitosa a Hercule Poirot.
Mas o interesse do livro não estava apenas nesse detetive belga, com a cabeça em forma de ovo e um bigode facilmente reconhecível em cinco continentes. Estava na personagem da Sra. Boynton, a matriarca tirânica que mantinha os filhos numa submissão inumana, numa prisão psicológica que me parecia mais terrível do que qualquer presídio concreto.
Ali estava o mal, pensava eu, na sua trágica banalidade. Como afirma um outro personagem do livro, há seres humanos que gostariam de tiranizar povos inteiros; na impossibilidade de cumprirem esse sonho, tiranizam as próprias famílias. Só a experiência e a idade me ensinaram como essa observação é tão certeira.
“Encontro com a Morte” não era, por isso, uma simples história policial. Era um retrato pungente sobre o fanatismo e a violência que transportamos em nós, o que aliás se ajusta ao cenário da ação: falamos do Oriente Médio, região que Agatha Christie conhecia bem, e onde as pulsões religiosas ou irredentistas sempre se fizeram sentir com uma intensidade apocalíptica.
Que o diga Sarah King, a jovem bacharel de medicina, que depois de visitar Jerusalém expressa o seu desejo de fazer desaparecer as religiões e as seitas para finalmente ver a figura imaculada de Cristo.
Não admira que seja ela, Sarah, com a sua sensibilidade e o seu horror ao excesso, a vislumbrar na Sra. Boynton essa mistura de maldade e ressentimento que envenenava lentamente a família.
Esse ambiente tóxico, sem surpresas, vai produzir um cadáver. E vai produzir também o grande show de Poirot.
Primeiro, na forma como o detetive vai colecionando pistas aparentemente anódinas, desconexas, até contraditórias sobre o crime. Poirot tem aquilo que Castiglione recomendava ao cortesão: “sprezzatura”, ou seja, uma leveza de trato nas matérias mais complexas. Como o próprio afirma, para desvendar um crime basta deixar que os outros falem.
Depois, quando os outros já falaram o que queriam e o que não queriam, Poirot é a suprema prima donna: ele gosta de montar um palco e encantar o público (e o leitor) com várias cortinas de ilusão. Até revelar a verdade, que nos parece simples, lógica —e elegante.
É um clássico dos livros de Agatha Christie: a verdade sempre esteve na frente do nosso nariz. Mas foi
preciso um artista do crime para transformar a evidência em obra de arte.
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