Numa segunda-feira de sol na comunidade do Boqueirão, na zona sul de São Paulo, três meninos brincam do clássico polícia e ladrão no campinho de futebol. Um menino empurra o outro contra o muro, começa a dar “coronhadas” com um pedaço de pau na cabeça dele, depois o joga no chão e começa a chutá-lo.
É a versão dos meninos da favela para a brincadeira —eles imitam o que veem toda semana durante as incursões da polícia na comunidade.
Mas o espectador não vai ver isso no filme “Vale Night”. Apesar de se passar na comunidade do Boqueirão, o longa não tem assassinato, traficante, nem violência, ao contrário de dez entre dez filmes que têm as favelas como cenário.
“Vale Night”, do diretor Luís Pinheiro, é uma comédia romântica que aborda os amores e desencontros de um grupo de amigos da periferia, em vez de se concentrar na violência da favela.
A produtora Querosene havia comprado um roteiro americano. Começava em um show de rock, tipo o Coachella, com uma adolescente grávida e o namorado, brancos, e depois narrava os tropeços do jovem pai ao ficar sozinho com o filho pela primeira vez.
Mas a Querosene já tinha filmado comédias românticas padrão, de classe média branca, como “Superpai” e “La Vingança”, e resolveu transplantar o enredo para a periferia.
Na versão brasileira, o filme começa com Daiana (Gabriela Dias), grávida aos 17 anos, entrando em trabalho de parto na Batekoo, festa do movimento negro e LGBT. O namorado de Daiana é Vini (Pedro Ottoni), um cabeleireiro fã de passinho, que resiste em crescer e assumir as responsabilidades da vida adulta.
Ottoni é um achado, literalmente —o comediante foi encontrado pelo seu Instagram, fazendo uma imitação de Jair Bolsonaro. “Vale Night” é o seu primeiro longa.
A melhor amiga de Vini é a DJ Pulga, interpretada pela cantora Linn da Quebrada.
Linn é trans e é a primeira vez que ela faz um papel que não gira em torno das questões relacionadas à sua identidade. “A Pulga está construindo a carreira dela como DJ, tem um namorado, vive desafios que não estão ligados a gênero”, diz. “Experimentei um pouco o privilégio da pessoa cis, que pode viver uma gama muito maior de papéis, sem estar sempre nesse imaginário de crime, prostituição, morte. Possibilita outras narrativas.”
O filme tem ainda Jonathan Haagensen, que atuou em “Cidade de Deus”, e a veterana Neusa Borges, que interpretam o irmão e a avó de Daiana. Todos os protagonistas do longa são negros.
“Filme em favela só tem tiro e droga, e negro só consegue papel de bandido, polícia ou empregada —por isso esse roteiro é tão maravilhoso, é uma baita oportunidade para atores negros”, diz Borges. “Espero que essa moda pegue e surjam mais histórias assim.”
O roteiro foi adaptado por Caco Galhardo, cartunista da Folha, com colaboração de Renata Martins. Eles fizeram inúmeras entrevistas com moradores do Boqueirão para entender a realidade da comunidade. A favela é dominada pelo PCC e só recentemente passou a ter rede de esgoto e luz sem puxar “gato” dos postes.
A comunidade vem se firmando como cenário para várias séries —“Carcereiros” e “Segunda Chamada” foram filmadas no Boqueirão.
Segundo o líder comunitário Diego Carneiro, o Bola, as produções empregam figurantes, assistentes e seguranças, além de pagar por locações. Ele e Tamires Rocha, que mora há mais de 20 anos na comunidade (e é filha do rapper Sabotage), trabalharam na equipe de “Vale Night”, que foi financiado pela Fox e fica pronto em janeiro.
“Não estamos pintando a favela de cor-de-rosa, mas estamos dando voz a um cotidiano que existe e é maravilhoso”, diz Justine Otondo, sócia da produtora Querosene.
O longa não ignora os problemas da periferia, ao abordar por meio da protagonista Daiana a gravidez na adolescência —a maior causa de evasão escolar em várias comunidades pobres.
Mas até tratando dessa realidade que dificilmente acaba bem, “Vale Night” traz um final feliz. Afinal, é uma comédia romântica.
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