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Fervor gospel de Kanye West lembra Tim Maia 'Racional'

Assim como o americano, o brasileiro vetou drogas, sexo e álcool na hora de compor álbum que se tornou um clássico

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Em janeiro, Kanye West deixou o microfone de lado durante um verso de “Father Stretch My Hands”. “Se eu transar com essa modelo/ E ela tiver acabado de descolorir o ânus/ Vou sujar minha camiseta de alvejante/ Vou me sentir como um ânus”, ele deveria ter rimado. Em vez disso, entrou em cena um poderoso coral gospel.

Era uma das apresentações do “Sunday Service”, misto de show com culto que ele vem realizando nos Estados Unidos. Até pela característica dos eventos —com banda, coral, metais e sermões religiosos—, era natural que ele poupasse seus versos mais sujos.

Mas o caso de “Father Stretch My Hands” é representativo da personalidade de Kanye (pronuncia-se “cánie”). Na mesma faixa em que canta sobre ânus, fala em cristianismo e música gospel do título ao sample —a canção do pastor T. L. Barrett.

Cantar sobre Jesus ou flertar com o gospel não é novidade para Kanye, mas na última semana ele renovou sua fé. Lançou “Jesus Is King”, álbum que marca o ápice do momento mais estranho de sua carreira.

Com menos de meia hora, o disco aprofunda o diálogo das batidas experimentais de hip-hop com samples épicos e a habilidosa manipulação das vozes simultâneas do gospel. Kanye também canta sobre Jesus, a mudança de atitude causada pela sua conversão e chega a repetir o nome de Cristo de maneira incessante.

Depois de um de seus discos mais amalucados, “The Life of Pablo”, de 2016, ele começou a ter paranoias e alucinações que o levaram a cancelar sua última turnê abruptamente para ser internado numa clínica.

Esse período difícil, que incluiu até um inesperado apoio a Donald Trump, foi registrado no disco “Ye”, do ano passado.

Kanye já disse, desde então, que recebeu um diagnóstico com transtorno bipolar, desenvolveu um vício em opioides e, por fim, chegou à Bíblia.

Desde que “Jesus Is King” saiu, os brasileiros vêm apontando semelhanças entre o trabalho de West e a fase “Racional” de Tim Maia. A referência ao período “crente” do soulman carioca é natural, mas a comparação entre os momentos dos dois é mais interessante do que parece.

Nos anos 1970, Tim Maia estava a todo o vapor. Com quatro discos de sucesso, aproveitava uma vida de excessos.

Por volta de 1974, aderiu a seita Universo em Desencanto, que inspirou os dois discos que ele lançaria a seguir, ambos chamados “Racional”. Os álbuns foram rechaçados pela crítica, enquanto Tim trabalhava para propagar a “imunização racional” mundo afora.

Dois ícones da música negra, Tim e Kanye encontraram a salvação depois de períodos conturbados de suas vidas. E, por mais que mude o livro que seguiram (“Universo em Desencanto” para um, a Bíblia para o outro) chama a atenção o grande número de semelhanças.

Quando o rapper Young Thug perguntou no Twitter se o verso sobre o demônio que ele havia mandado a Kanye ainda estava na letra de “Jesus Is King”, a resposta era desnecessária. Kanye não só vetou os palavrões, mas sugeriu o celibato aos que trabalharam no disco.

Tim deu a mesma recomendação à sua banda para “Racional” —além de recomendar abstinência de álcool e drogas e a obrigatória devoção à seita.

Montagem com as capas dos discos 'Racional', de Tim Maia, e 'Jesus is King', de Kanye West
Montagem com as capas dos discos 'Racional', de Tim Maia, e 'Jesus is King', de Kanye West - Reprodução

O brasileiro também pediu que todos os instrumentos fossem pintados de branco. Já Kanye escolheu o azul para sua banda e para a capa.

Hoje, “Racional” virou um clássico —embora Tim, depois de ter abandonado a seita, tivesse renegado os discos, proibindo até que eles fossem regravados ou relançados.

“Jesus Is King” não ganhou simpatia imediata da crítica e está dividindo os fãs. Assim como acontece com Tim, o disco religioso não deve ser encarado como o mais inspirado do americano, mas é difícil prever qual será, em quatro ou cinco décadas, a percepção a respeito do período em que o rapper deixou de querer ser Deus para cantar sobre outro.

É uma pena que Kanye talvez desconheça Tim Maia. Não só por inviabilizar que uma música do brasileiro seja sample nas mãos do americano, mas porque Kanye não tem, por exemplo, a letra de “Bom Senso” para se inspirar. É possível que o rapper se identificasse com o momento mais esquisito e improvável do Síndico —afinal, são adjetivos que poderiam definir toda a carreira de Kanye.

Jesus Is King

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  • Autor Kanye West
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