Games criam distopias para criticar a exploração do trabalho e o capitalismo

Jogo norueguês 'Mosaic' é inspirado em Huxley, Chaplin e em 'marxista complicado'

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Cena do game norueguês 'Mosaic', que faz crítica ao capitalismo atual

Cena do game norueguês 'Mosaic', que faz crítica ao capitalismo atual Divulgação

São Paulo

Um fantasma ronda a cultura. No cinema, longas como “Parasita”, “Bacurau” e “Coringa” enchem as salas. Os livros “1984” e “A Revolução dos Bichos”, de George Orwell, voltaram às listas dos mais vendidos.

Não é bem o fantasma do comunismo que os cerca. Mas uma certa inquietação com conflitos de classe é um denominador comum —e ele está até entre os videogames.

Nos jogos de plataforma tradicionais, os personagens devem caminhar para o lado direito da tela para passar de fase. Mas em “Mosaic”, jogo norueguês que será lançado em 5 de dezembro no Steam, se o jogador decidir ir para a esquerda, pode encontrar agradáveis surpresas.

Sobre o caráter metafórico disso “você é livre para interpretar como quiser”, diz via Skype o diretor-executivo do estúdio Krillbite, Jon Cato Lorentzen, que segura o riso em seu escritório em Oslo. 

O jogo segue o dia a dia de um trabalhador de uma megacorporação, que vive em uma espécie de distopia atual, na qual praticamente não há contato físico, relações interpessoais e nem muito motivo para ser otimista. Com uma paleta de cores escuras, é tudo monótono, repetitivo e sem sentido. O protagonista segue apenas vivendo, até que se rebela contra o sistema.

O diretor criativo do estúdio, Adrian Tingstad Husby, explica o título. “A empresa para a qual você trabalha dentro do jogo se chama Mosaic. Além disso, o game é sobre como várias pequenas peças formam uma grande estrutura”, diz. “É uma história sobre alguém excluído do sistema, mas também sobre alguém que se liberta disso.”

A ideia surgiu durante o exaustivo processo final de desenvolvimento do jogo anterior do estúdio, “Among the Sleep” (disponível para PS4, Xbox e no Steam para Windows e Mac). “Estávamos trabalhando dia e noite para conseguir finalizar o jogo dentro do prazo”, diz Husby. “Fazer games é bem diferente de jogar games.”

Curioso um jogo descrente em relação ao futuro como “Mosaic” ter surgido na Escandinávia, terra do Estado de bem-estar social que costuma figurar entre os países mais felizes do mundo no World Happiness Report —em 2019, Noruega e Dinamarca ficaram em segundo e terceiro lugar, respectivamente.

“Somos extremamente privilegiados na Noruega. Vivemos em uma sociedade que funciona, o Estado cuida [de seus cidadãos]”, diz Lorentzen. A produção de “Mosaic” recebeu cerca de US$ 500 mil (cerca de R$ 2,1 milhões) de recursos públicos do governo.

“Mas nós nos sentimos conectados com o resto do mundo, estamos sempre sendo lembrados dos lados ruins do capitalismo. Quando fomos a San Francisco, nos Estados Unidos, vimos a pobreza”, conclui Lorentzen —e olha que eles não visitaram cidades da América Latina ou rincões da África ou da Ásia.

A correlação de “Mosaic” com a série “Mr. Robot” é quase automática. Ambos falam de ativismo e revolução na era digital, além de sistemas construídos para controlar as pessoas. Husby não nega que a comparação faz sentido, mas elenca referências menos atuais para sua obra.

Ele cita os filmes “Brazil” (Terry Gilliam, 1985) e “Playtime - Tempo de Diversão” (Jacques Tati, 1967), Charles Chaplin e os escritores Aldous Huxley, George Orwell e H.G. Wells.

Mas Husby afirma que sua principal inspiração foi o jogo “Every Day the Same Dream” (todo dia o mesmo sonho, em português), do italiano Paolo Pedercini. Definindo-se como um “marxista complicado”, evocando Slavoj Zizek, Pedercini é professor no departamento de artes da universidade Carnegie Mellon, em Pittsburgh, nos EUA.

O jogo, em duas dimensões, tecnologia Flash e gratuito, foi feito em menos de uma semana, em 2009. Com uma paleta de cores ainda mais limitada —alguns poucos tons de cinza—, ele segue a rotina sem graça de um zé-ninguém que trabalha num cubículo.

O jogador pode levar o protagonista a seguir a mesma rotina várias vezes. Mas também pode fazer com que ele vá ao trabalho só de cueca ou dê um passeio com uma vaca em vez de bater o ponto —ou ainda incitá-lo a se jogar de um prédio.

Jogo 'Every Day the Same Dream', de Paolo Pedercini
Game 'Every Day the Same Dream', de Paolo Pedercini - Reprodução

Pedercini diz ter superado os tempos de “Every Day the Same Dream”. “Estou em outra agora. Tem gente que acha que é válido apostar no mesmo tipo de estética, narrativa. Para mim, já está ultrapassado. Existe uma infinidade de jogos sobre loops de tempo, sobre alienação do trabalhador.”

Ele diz que a intenção inicial da obra era fazer uma paródia dos “games de arte”. “Eu estava tirando sarro desse clichê do homem assalariado que tem uma vida triste, mas que está mais na mente dos artistas do que na vida real”, diz Pedercini. Quando o designer adicionou uma trilha sonora à la Radiohead, porém, a criação ganhou uma aura mais dramática.

A crítica ao sistema —seja ele qual for— é uma constante na carreira do italiano. Para financiar seu estúdio, ele já vendeu camisas com os dizeres “nós somos materialistas históricos dos videogames”, em referência ao conceito marxista.

Mas ele é mais conhecido pelo aplicativo “Phone Story”, que mostra a cadeia de produção dos smartphones. Primeiro, o jogador controla soldados que coagem crianças escravizadas na região do Congo. Depois tenta evitar suicídios de funcionários chineses. Por fim, organiza a reciclagem de lixo gerado a partir de telefones celulares, que é feita em condições insalubres por pessoas pobres em países de terceiro mundo.

O game foi banido menos de quatro horas depois de ter subido na loja virtual da Apple.

Game 'Phone Story' mostra a trajetória produtiva dos smartphones: trabalhadores escravizados no Congo, suicídios de funcuionários chineses e condições insalubres de quem recicla lixo gerado por celulares
Game 'Phone Story' mostra a cadeia produtiva dos smartphones: trabalhadores escravizados no Congo, suicídios de funcionários chineses e condições insalubres de quem recicla lixo gerado por celulares - Reprodução

Visualmente, o jogo é bem simples, com gráficos tão rudimentares quanto os de um “Pokémon Blue”. “O objetivo não era que o jogo fosse interessante por si só. Era mais o gesto de criar um game como esse e colocá-lo na App Store.”

“Eu sou um designer de games”, diz o italiano, dando ênfase à palavra “designer”. “Respeito o ofício do designer, então é um pouco decepcionante que este seja o meu jogo mais conhecido [risos].”

Pedercini comanda a Molleindustria, estúdio que tem entre seus objetivos a “reapropriação dos videogames”.

“Eu prefiro criar uma distância crítica, em que os jogadores não ficam somente imersos em algo, mas sim pensando ativamente no que estão fazendo ou no que significa aquilo que estão jogando.” Seus últimos jogos abordaram gentrificação e urbanismo, na contramão de franquias como “SimCity”.

Mas tanto Pedercini quanto Lorentzen e Husby se mostram otimistas quanto ao futuro. O próximo projeto dos noruegueses da Krillbite, que já conseguiu financiamento, pretende ser um “jogo alegre, que se passa em um mundo colorido”, diz Husby.

Já Pedercini está trabalhando em uma aventura passada em futuro próximo, uma utopia que seguiu o que ele diz julgar ser o caminho certo.

Mosaic

  • Quando Lançamento em 5/12
  • Onde store.steampowered.com
  • Preço R$ 37,99
  • Produção Noruega, 2019
  • Direção Adrian Tingstad Husby

Distopia Gamer

Mosaic
No soturno jogo para Stream do estúdio norueguês Krillbite, lançado no próximo dia 5, um trabalhador de uma megacorporação se rebela contra o sistema

Every Day the Same Dream
Criado pelo designer italiano Paolo Pedercini, o game em 2D é gratuito e permite que o jogador tanto leve o protagonista a seguir a mesma rotina de escritório todo dia quanto cabule o trabalho para passear por aí

Phone Story
Outra obra de Pedercini, o app para celular foi banido da Apple Store quatro horas depois de seu lançamento e mostra o ciclo de explorações em que a produção de smartphones pode se basear, de crianças escravizadas na África à mão de obra barata usada na reciclagem

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