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Filmes de temática indígena colecionam prêmios em festivais internacionais

Falados em línguas nativas, as obras, no entanto, podem ter problemas para alcançar o público no Brasil

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São Paulo e Brasília

Dipirona, geladeira, supermercado. As palavras, em português, saltam aos ouvidos dos espectadores do longa “A Febre”, de Maya Da-Rin, falado em grande parte em tukano, espécie de língua franca entre os povos indígenas do Alto Rio Negro, no Amazonas.

E são simbólicas da desconexão que Justino, um vigilante portuário da etnia desana, sente em relação à cidade grande, onde criou os filhos.

Não é à toa, nesse sentido, que a narrativa engrena graças a outro termo sem tradução para o tukano. É depois que sua filha, uma técnica de enfermagem, conta ter sido aprovada em medicina na “Universidade de Brasília” que Justino é acometido pela febre do título.

A língua não impediu o filme de ganhar sete prêmios internacionais, entre eles melhor ator para o protagonista, Regis Myrupu, no Festival de Locarno, na Suíça, onde estreou em agosto deste ano.

O feito se repetiu por aqui. Só no mês passado, ele conquistou cinco prêmios no Festival de Brasília, depois de ter arrematado o troféu de melhor filme no Janela Internacional, no Recife. Nesta quinta (19), testará suas chances na competição nacional do Festival do Rio.

O reconhecimento vem quase sete anos após o início do projeto, conta Da-Rin.

A maioria destes foi dedicada a uma extensa pesquisa de campo que incluiu, entre outros, o acompanhamento do cotidiano de funcionários do porto e de postos de saúde em Manaus e uma seleção
de elenco realizada ao longo de um ano, em dezenas de comunidades indígenas.

Nem Myrupu nem Rosa Peixoto, que vive sua filha, atuavam profissionalmente antes.

“Trabalho muito com pesquisa”, afirma Da-Rin, que antes de “A Febre” filmou dois documentários na região da tríplice fronteira amazônica, em que cidades do Brasil, Colômbia e Peru se encontram.

Essa veia documental também aparece na opção por filmar diálogos improvisados pelo elenco em sua língua nativa. Como Da-Rin não domina o idioma, uma das atrizes anotava as mudanças no roteiro para guiar a edição depois.

“O Brasil tem mais de 150 línguas indígenas, e a maior parte dos brasileiros nunca as escutou. Acho que isso é muito representativo da relação que a sociedade tem com esses povos”, afirma a diretora.

Questionada se em algum momento ficou receosa em relação ao seu “lugar de fala”, isto é, sua legitimidade para falar sobre o universo indígena, Da-Rin —que é filha dos cineastas Sandra Werneck (“Pequeno Dicionário Amoroso”) e Silvio Da-Rin (“Hércules 56”) — afirma que seu maior objetivo ao realizar um filme sempre é aprender com os encontros que ele proporciona. Por isso, “era muito importante que ele pudesse surgir de um processo colaborativo”.

“Apesar de a diretora ser branca, esse é um filme que põe a nossa cultura no centro, e faz isso a partir do ponto de vista de um indígena”, concorda Myrupu, ressaltando que a produção também deu oportunidades de emprego concretas ao elenco.

“Por outro lado, entendemos que nossa cultura representa um valor no mundo dos brancos, em geral não reconhecido. Ela é explorada do mesmo modo que a floresta, sem que isso traga melhorias para nós”, diz o ator. “Agora, falta ter uma verdadeira capacitação, para que consigamos criar projetos que nos permitam sobreviver dignamente através da nossa cultura.”

Foi um projeto de oficinas cinematográficas que a brasileira Renée Nader Messora e o português João Salaviza ministravam na aldeia Pedra Branca, no Tocantins, quando rodaram “Chuva É Cantoria
na Aldeia dos Mortos”
com indígenas da etnia krahô.

Com uma trajetória que incluiu os prêmios do júri da mostra Um Certo Olhar, em Cannes, na França, e do Festival de Mar del Plata, na Argentina, ele compartilha diversos atributos com o filme de Da-Rin. Entre eles, a participação dos atores na construção da narrativa, e a manutenção da língua dos krahô, em que os cineastas não são fluentes.

Nader Messora, que convive com a população há uma década, avalia que esse processo “condicionado pela incapacidade” trouxe muitos elementos positivos para o filme.

“Filmar uma sequência de diálogo em que não se sabe exatamente o que está sendo dito equilibra a relação de poder entre quem filma e quem é filmado”, afirma, acrescentando que eles ainda tiveram gratas surpresas ao traduzirem o longa, descobrindo novos significados nas falas dos atores.

“Também tem uma coisa simbólica, que é onde chega um idioma indígena. Uma língua falada por 3.000 pessoas foi ouvida por mais de 90 mil. E serve de janela para um momento tenebroso, em que esses povos estão sendo sistematicamente atacados”, diz Nader Messora.

No tapete vermelho de Cannes do ano passado, a equipe do longa empunhou cartazes pedindo a demarcação das terras indígenas e o fim do genocídio dessas populações.

O assunto também foi trazido à tona por Rosa Peixoto antes da exibição de “A Febre” no Festival de Brasília.

Então, ela contou que sua mãe a havia alertado para tomar cuidado ao viajar pois, na capital federal, queimavam índios vivos —uma referência ao caso de Galdino Jesus dos Santos, nos anos 1990. “Não queremos só ter nossas histórias contadas, mas estar vivos para narrá-las”, disse a atriz.

Mas contar a histórias não é garantia de que serão ouvidas. “Chuva” fez cerca de 4.000 espectadores no Brasil. Na França, foram cerca de 45 mil, ou 11 vezes a plateia nacional, segundo Salaviza.

Outros longas nacionais recentes sobre a temática indígena encontraram um destino semelhante. Foi o caso de “Piripkura” (2018), “Antes o Tempo Não Acabava” (2017) e “Taego Ãwa “(2017), que fizeram menos de 2.000 espectadores cada um, segundo dados da Ancine, a Agência Nacional do Cinema.

Uma exceção foi “Ex-Pajé” (2018), de Luiz Bolognesi, visto por mais de 9.100 pessoas —menos do que outro dos documentários mais comentados daquele ano, “O Processo”, de Maria Augusta Ramos, visto por quase 66 mil pessoas.

Sem previsão de estreia no circuito comercial, Myrupu diz esperar que “A Febre” seja uma oportunidade de refletir sobre o tratamento dos povos indígenas ontem e hoje. “Principalmente para os brasileiros, porque os estrangeiros já estão cientes disso”, cutuca.

A Febre

  • Elenco Regis Myrupu, Rosa Peixoto e Edmildo Vaz Pimentel
  • Produção Brasil, 2019
  • Direção Maya Da-Rin

A jornalista viajou a convite do Festival de Brasília

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