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Artigo inédito de Albert Camus relata angústia durante a ocupação na França

Obra encontrada nos arquivos do general Charles de Gaulle antecipava ataques ideológicos ao escritor

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​Nesta semana em que foram lembrados os 60 anos da morte de Albert Camus, num acidente de automóvel no dia 4 de janeiro, o jornal francês Le Figaro publicou um raro inédito do autor por trás do romance “A Peste”. 

É um texto que permaneceu guardado nos arquivos do general Charles de Gaulle, líder da Resistência francesa durante a ocupação nazista.

 

“De um Intelectual Resistente” é o nome do artigo, escrito a pedido do comitê de informação dos militantes antifascistas, que solicitava análises da situação a jornalistas e ensaístas que haviam permanecido no território francês sob domínio alemão —a região sul do país permaneceu sendo supostamente “zona livre”, porém comandada pelo governo colaboracionista de Vichy, tendo à frente o general Pétain.

 

O interesse do artigo é duplo. De um lado, é um dos poucos documentos que não entraram nos quatro volumes da edição da obra completa de Camus pela Bibliothèque de la Pléiade —mais prestigiosa coleção de clássicos antigos e modernos do mundo editorial, reunindo não apenas os livros do escritor, mas também diários e cadernos de trabalho, prefácios, artigos esparsos e manuscritos inéditos em vida.

Por outro, o texto, sem identificação de autoria, traz as características dos editoriais que Camus escrevia para o jornal Combat, veículo clandestino do grupo resistente homônimo, que ele editava com seu amigo argelino Pascal Pia. 

O artigo teve autoria reconhecida por diferentes fontes e pela filha do escritor, Catherine Camus, que autorizou sua inclusão no livro “Camus, des Pays de Liberté”, a ser lançado na semana que vem pelo historiador Vincent Duclert, responsável pela descoberta do datiloscrito camusiano. 

Ao relatar o “sentimento de angústia” dos intelectuais que se batem na Resistência, não falta ironia à forma como Camus se dirige aos demais franceses.

“Um intelectual não pode ignorar que uma nação morre porque suas elites se dissolvem”, diz ele no início —logo acrescentando, entre parênteses, que “bem entendido, só existem duas elites: a do povo e a da inteligência, [...] a reunião de homens cujas palavras se apoiam sobre uma experiência real”.

Para poder falar, porém, essa elite (que nas entrelinhas Camus associa à Resistência) “deve aceitar a ideia da desaparição”, quando então a palavra caberia aos outros, àqueles que “se colocaram como testemunhas e que não foram nada mais do que prudentes” (um eufemismo para os omissos ou mesmo para os colaboracionistas).

O artigo foi escrito no ano de 1943, em pleno conflito, e não deixa de ser surpreendente que Camus pareça menos preocupado com o desenlace da guerra do que com o dia seguinte da libertação, quando a história seria escrita não pelos resistentes (provavelmente já mortos), mas por aquela outra elite da França, mais tradicional e reacionária, que convenientemente estendeu tapetes vermelhos a Hitler.

Não faltam, também, algumas estocadas na mobilização dos exércitos aliados. Camus sugere, mais uma vez com ironia, que “a resistência à ação direta e armada [dos nazistas] foi prematura, pois hoje, após mais de um ano, a ação militar exterior não veio em seu apoio”. 

Na “corrida contra o relógio” descrita de modo aflito em “De um Intelectual Resistente”, se insinua assim um quadro futuro, que antecipa os conflitos ideológicos e morais que o escritor viverá no período pós-Guerra. 

Se o artigo afirma que “a ideologia da Resistência é praticamente nula”, que a ação insurgente foi ditada por uma urgência de liberdade e justiça a despeito de condicionamentos históricos, Camus já entrevê as querelas que, uma vez terminada a Segunda Guerra, vão dividir intelectuais e homens públicos.

Antecipando a Guerra Fria, ele descreve derivas ora em direção aos Estados Unidos (que em nome da libertação da Europa imporá um modelo que põe a justiça de lado), ora em direção à União Soviética (cuja promessa de primeiramente promover igualdade econômica para depois reconciliá-la com liberdade Camus avalia com discreto ceticismo).

A essa altura, Camus era apenas o jovem jornalista que, nascido em 1913 na Argélia (então um departamento francês no norte da África), havia assombrado o meio cultural parisiense com a publicação do romance “O Estrangeiro” e do ensaio “O Mito de Sísifo”, livros em que o tema do absurdo (onipresente em sua obra) aparece numa dimensão individual ou subjetiva.

No entanto, seu engajamento na Resistência já trazia  as sementes de uma reflexão sobre a dimensão coletiva do absurdo que apareceria em “O Homem Revoltado” —ensaio de 1951 que, pondo a ética acima da eficácia política, seria responsável pelos ataques ideológicos sofridos por Camus e que ele anteviu no texto que acaba de vir à luz.

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