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Governos latinos praticam tortura ao impedir o aborto, diz Margaret Atwood

Autora de 'O Conto da Aia' promove a sequência da obra, 'Os Testamentos', e trabalha num livro de poesia, 'Dearly'

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Cartagena

Margaret Atwood está de olho no movimento dos pássaros. Há mais de uma semana na Colômbia, onde participa do Festival Hay de literatura, ela aproveita o espaço entre palestras e entrevistas para fazer excursões e observar aves. A autora de “O Conto da Aia”, que está promovendo a sequência da obra, “Os Testamentos”, diz que ser ativista pelo ambiente e pelos direitos da mulher são coisas que caminham juntas. 

“Os pássaros nos indicam muitas coisas, onde a água está acabando, onde a vida está morrendo. E as mulheres são mais sensíveis às mudanças no ambiente porque também sabem que a opressão sobre elas e seus direitos são um sinal de que a humanidade está em risco. A diferença é que os pássaros nos avisam, mas não podem fazer nada para mudar a política, e nós, sim, podemos”, disse a escritora canadense a esta repórter, em Cartagena. 

Antes de começar a falar de literatura, porém, faz um alerta. “No Brasil vai acontecer o mesmo que na Austrália, com os incêndios. Os alertas estão aí, o desmatamento, a desaparição das condições de vida, e há políticos que creem que não há uma mudança climática ocorrendo no mundo, como o presidente do Brasil.”

Em “O Conto de Aia”, publicado em 1985, Atwood imaginou que parte dos Estados Unidos seria transformada num novo país, uma ditadura religiosa rebatizada de Gilead, em que mulheres férteis seriam obrigadas a terem filhos dos “comandantes” do regime, entregarem esses bebês e serem encaminhadas a outras famílias. 

A obra ganhou enorme projeção por causa de sua adaptação para uma série de TV protagonizada por Elisabeth Moss. Também ganhou força porque foram notadas semelhanças entre os EUA de Trump e a sufocante Gilead.

Em “Os Testamentos”, Atwood avança 15 anos no tempo. Na obra, estão compilados três depoimentos de mulheres. 

Uma delas é a famosa tia Lídia, que gerencia a formação das aias no primeiro livro. Aqui, ela, já envelhecida, conta suas memórias e de como viu Gilead nascer e começar a sucumbir. As outras duas são jovens. Uma é uma menina que cresceu em Gilead —onde as mulheres não podiam aprender a ler e a escrever— e foi encaminhada para se casar com um “comandante”. A outra nasceu em Gilead, mas sua mãe, uma rebelde, a mandou, correndo vários riscos, para o Canadá, para que fosse livre.

A ideia é que o livro não colida com a série, que já tem sua quarta temporada em produção. “Dei esse salto no tempo para deixar que um espaço seja preenchido pelos autores da série. Melhor do que escrever uma quarta temporada e pedir que eles filmem, preferi ir adiante, contei como termina a história, mas deixei um espaço para que os roteiristas preencham. É um desafio que fiz a eles”, conta, dando risada. “Os Testamentos” ganhou o Booker Prize do ano passado.

Mesmo que seja aterradora, a realidade em Gilead é baseada “só em coisas reais feitas contra as mulheres, ao longo da história da humanidade”. “A diferença é que, na obra, todas ocorrem no mesmo tempo e lugar. É por isso que, aonde vou, sempre há alguém que se aproxima e diz que vivenciou algum aspecto dessa história”, conta Atwood. 

A faísca para criar Gilead ocorreu quando Atwood trabalhava para a Anistia Internacional, no Canadá, no fim dos anos 1970, e soube que, na distante Argentina, a ditadura militar roubava bebês que eram filhos dos considerados “subversivos” pelos militares. As crianças eram entregues a famílias dos agentes do Estado depois que os pais eram mortos.

“Naquela época, era sabido que isso acontecia, mas não na escala em que de fato ocorreu, por isso que minha relação com a Argentina hoje é muito peculiar”, diz. Atwood entrou há pouco em contato com organizações de direitos humanos no país, que buscam a identidade dessas pessoas, como as Avós da Praça de Maio, e acabou sendo escolhida como madrinha das jovens feministas argentinas, que fizeram performances vestidas como as aias da obra diante do Congresso, pedindo para que a lei do aborto fosse aprovada. 

“Fiquei muito feliz, porque um protesto como fizeram as argentinas, sem distúrbios, silencioso, apenas vestindo as roupas das aias, é algo que não se pode reprimir, porque é uma performance, ao mesmo tempo com uma mensagem política muito forte”, conta. 

Na ocasião, durante a recém-encerrada gestão de Mauricio Macri, a lei do aborto não foi aprovada, por uma diferença pequena de votos no Senado. 

“Estou confiante que agora, com o novo governo, a lei passe. É muito cruel que a América Latina esteja tão atrasada em relação aos direitos reprodutivos da mulher. O que fazem esses governos é tortura ao impedir que abortem, ao deixar que se arrisquem em abortos clandestinos”, diz.

Mesmo que “Os Testamentos” narre o início da destruição de Gilead, Atwood diz que não considera o livro otimista. 

“Tiranias podem durar muito tempo, e causam retrocessos que duram ainda mais tempo depois. Você pode perceber que as ditaduras da América do Sul deixaram traumas nesses países, que os períodos salazarista e franquista em Portugal e na Espanha arruinaram mais de uma geração e mudaram hábitos. É importante ver os sinais de um retrocesso e fazer algo quando ainda é possível.”

Ela vê retrocessos nos direitos civis hoje em muitos países. 

“No Brasil, isso está claro, com a negação da mudança climática, com o racismo, com a homofobia. Nos Estados Unidos, há estados revendo leis relacionadas ao aborto, às drogas. Em todo o mundo, vemos mais decisões políticas sendo tomadas por causa de uma religião, e isso é muito perigoso. O que as pessoas talvez não notem é que as mudanças muitas vezes ocorrem de um dia para o outro. Se não estiverem atentas, podem amanhã acordar em Estados totalitários.”

Atwood também afirma que os períodos vistos como progressistas foram, na verdade, ruins para as mulheres. “A ideia de que o século 19, por exemplo, foi um tempo de aceleração na conquista de direitos é errada, por causa do protagonismo dos homens, da corrida deles pelo poder que gerava o dinheiro. As mulheres já haviam estado muito melhor antes.” Mas, antes, quando?

“Pode soar estranho, mas as mulheres estiveram melhor depois de grandes tragédias da história da humanidade. Por exemplo, depois da Peste Negra na Europa, quando muitos homens morreram e as mulheres foram necessárias em posições chave do poder e do mundo do trabalho. O mesmo ocorreu depois da Segunda Guerra Mundial, também por causa da falta de homens. Tirando situações como essas, nenhum movimento dito progressista foi, de fato, bom para a mulher, ainda.”

Enquanto promove “Os Testamentos”, Atwood trabalha num novo livro de poesia, “Dearly”, com lançamento nos EUA previsto para novembro. Até lá, diz que continuará observando as migrações de pássaros e a ascensão e queda de totalitarismos, “buscando alertar para a situação da mulher e para o cuidado com o ambiente, seja na prosa, seja em discurso”.

Os Testamentos

  • Preço R$ 54,90 (448 págs.)
  • Autor Margaret Atwood
  • Editora Rocco
  • Tradução Simone Campos
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