Descrição de chapéu Coronavírus

Bolso de quem vive de arte se enche de incertezas durante crise do coronavírus

Pandemia força artistas como Osgêmeos, Bivolt e Sandra Kogut a adiar o lançamento de suas obras e prejudica rendimentos

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Rio de Janeiro

No início do mês, a vida sorria para a rapper Bivolt. Ela lançaria seu primeiro disco depois de dez anos de carreira na zona sul de São Paulo e tinha sete datas de shows e eventos confirmadíssimos, além de outras seis em vias de assinar. E aguardava ansiosa a festa de lançamento do álbum aberta para o público, na Vila Madalena.

A cantora Bivolt
A cantora Bivolt - Reprodução/Facebook

A festa, programada para o dia 6 de março, foi a primeira a cair. “O local do evento pertence a uma multinacional, e eles, antes das empresas brasileiras, começaram a fechar os locais no mundo inteiro”, conta Bivolt. Na ocasião, assim como a maioria dos brasileiros, ela não tinha informações de que o vírus seria algo tão destruidor. Daí a enorme frustração pelo cancelamento.

“Foi um chute no peito”, resume. Uma festa bem mais restrita, para jornalistas e funcionários da Som Livre, acabou acontecendo no dia 5, em outro lugar.

Mas, também por causa do coronavírus, uma brincadeira esperta do álbum de Bivolt acabou esvaziada —se você tocar a primeira música, “110”, e a última, “220”, ao mesmo tempo, as duas formam uma terceira canção, que se chama “Bivolt”.

“Só que a ideia era aproximar pessoas. Fiz isso pensando em duas pessoas tocando ao mesmo tempo, em seus celulares ou em dois laptops, cada um uma música, e assim escutarem essa terceira. E agora, o certo é cada um ficar em casa, sozinho. Não dá para brincar com o vírus.”

Em seu canal do YouTube, há clipes das duas músicas e, abrindo duas telas, é possível dar dois plays simultâneos. “Espero que as pessoas curtam assim, e que o canal gere alguma renda. Eu e minha equipe dependemos da música para viver. Ser artista é bem difícil, a renda vem dos shows”, conta ela.
Com toda a agenda cancelada e sem grana entrando, Bivolt diz que “tenta minimizar o problema e ser otimista”.

Há cerca de um ano, o empresário Marcelo Vicintin é alvo de piadas a respeito de sua estreia literária. O coronavírus piorou sua situação.

Como nunca lançou nada, a notícia de que tanto a Companhia das Letras quanto a editora 7 Letras haviam se interessado pelo romance “As Sobras de Ontem” surpreenderam sua família e seus amigos.

E os encheram de orgulho. O livro era um projeto secreto. Só sua namorada soube que ele trabalhava num texto ficcional entre 2016 e 2018.

Mas o livro, enviado no fim de 2018 e aprovado por ambas as casas poucos meses depois, agora precisaria entrar na linha de montagem da escolhida, a Companhia das Letras. “Nesse hiato de um ano entre a aprovação e o lançamento, o pessoal começou a brincar ‘cadê esse livro que não saiu nunca?’, ‘existe mesmo?’ e ‘agora que você contou do livro é que começou a escrever’”, lembra Vicintin.

Na semana passada, depois de passar por editor, revisor e aprovar a segunda prova, ele pôde divulgar uma data aproximada de lançamento. Seria na última semana de abril, numa livraria paulistana. A única coisa que faltava era fazer a foto do autor, que vai na orelha do livro. A Companhia já havia começado a divulgação.

“Ao retratar o Brasil através de sua degradação econômica, Marcelo Vicintin constrói um livro singular, com altíssimo poder de capturar o leitor. Uma estreia surpreendente”, escreveu a editora numa rede social.

Até que, há cerca de 15 dias, ele recebeu uma ligação de seu editor. Tudo estava sendo adiado e até a gráfica tinha parado. “Como fui o primeiro a ser desmarcado, ele me disse que serei o primeiro quando as coisas voltarem ao normal”, conta.

É claro que os amigos não perdoaram. “Eu disse que ele não tinha escrito nada e que era desculpa para não trabalhar”, gozou um deles. Vicintin é sócio de uma empresa de energia solar que faz projetos para redes de varejo. Desde o cancelamento da obra, ele e suas irmãs foram fazer quarentena na fazenda da família, no interior paulista.

“Aqui pelo menos tem essa área ao ar livre”, conta. Seu pai recebeu diagnóstico positivo para o coronavírus e ficou em quarentena, com a mãe de Vicintin, em São Paulo.

“Mas tive tantas satisfações com o livro, incluindo ter sido aceito pelas duas editoras para as quais mandei cópia, que esse contratempo não é suficiente para me desanimar. É frustrante, é claro. Mas
as pessoas estão passando por dificuldades tão maiores.

”Sandra Kogut ia lançar o seu terceiro longa-metragem de ficção, “Três Verões”, na semana passada, justamente no dia em que deu entrevista para este jornal. “Nossa, não faz nem uma semana que adiamos parece que já faz um ano”, suspirou.

“Aquela semana foi muito intensa”, diz. “O trabalho de promoção a mil, muita alegria, felicidade da equipe, de finalmente ver o filme nascendo, um esforço de tanto tempo e de tanta gente. Mas as coisas foram mudando muito rápido.”

No dia 11 de março, a OMS declarou pandemia. “No dia seguinte fui a uma pré-estreia em Brasília já me sentindo estranha. Havia um paradoxo, como chamar as pessoas para ir ao cinema se havia orientações de não poder haver convívio social?”

Quando chegou a sexta-feira, diz ela, o adiamento se impôs. “Não tinha condições de não adiar. Não me sentia capaz de convidar pessoas para o filme. Não foi preciso tomar decisão, era a única coisa possível”, avalia. No fim do dia, ela avisou Regina Casé, protagonista do longa, e publicou posts cancelando a estreia.

Dois dias antes “Três Verões” havia sido lançado em Paris. O filme é uma coprodução Brasil-França, e o lançamento por lá era grande. “Eram 70 cinemas. Tínhamos 280 outdoors espalhados por Paris. O
longa estreou bem, foi aumentando a bilheteria e, quatro dias depois, os cinemas franceses foram fechados.”

O filme, que aqui teria cem cópias, ainda não tem nova data de estreia. “A discussão agora é como a indústria da cultura vai atravessar esse período. Já estávamos numa situação muito dura. E agora?”

Osgêmeos, dupla formada pelos irmãos Gustavo e Otávio Pandolfo, abririam no próximo dia 28 a maior exposição de sua carreira, com 650 trabalhos na Pinacoteca, em São Paulo. “Uma mostra extremamente importante para a gente”, diz um deles no viva-voz durante a entrevista feita por telefone. “A gente vai inaugurar, mas não agora”, completa o outro.

A mostra, chamada “Segredos”, é uma retrospectiva com trabalhos inéditos, outros que foram exibidos só em outros países, como Estados Unidos, Japão, Índia, China e na Europa, e vai evidenciar o processo criativo da dupla nos anos 1980 e 1990. Trará desde desenhos de infância até esculturas e pinturas atuais, passando por vídeos e instalações. Mas agora não há mais data para a abertura.

“É nossa exibição mais complexa, resultado de mais de um ano de pesquisa”, resumem. A montagem, que estava a todo vapor quando a pandemia foi declarada, acabou interrompida na semana passada, com 70% da exposição completa. As obras ficarão no local até a inauguração, quando a Pinacoteca reabrir.

“Sentimos o adiamento de forma bem natural. É um aprendizado para todo mundo, não vejo como uma frustração. É um momento muito triste e vamos colaborar para o bem, ficando em casa na quarentena. Estamos felizes por adiar o restante da montagem e ajudar a proteger os trabalhadores da Pinacoteca.”

O compositor de música erudita Leonardo Martinelli, 42, recebeu uma encomenda surpreendente no ano passado: deveria criar uma ópera embasada no texto Navalha na Carne, de Plínio Marcos, para o Theatro Municipal de São Paulo. Era a primeira vez, ele conta, que a instituição encomendava uma ópera em seus 109 anos de funcionamento. Como muitos teatros eruditos, o Municipal paulistano costuma apresentar ópera consagradas.

“A encomenda musical permite que a gente tenha um diálogo com o público local e do seu tempo”, afirma Martinelli, que está compondo provavelmente a ópera com a maior quantidade de palavrões já escrita na língua portuguesa. “Tem muito ‘filho da puta’, ‘vaca’, ‘seu bosta’ e ‘seu merda’ cantados à la lírica”, diz.

Também é surpreendente que até agora, ontem pelo menos, o Theatro não o tenha avisado que a estreia, em 18 de junho, tenha sido adiada. O que houve até agora foi o cancelamento do início da temporada. Portanto, Martinelli segue com o combinado inicial, o de entregar a peça pronta em 13 de abril.

“Tinha 40 minutos prontos em cerca de dois meses de trabalho. Na semana passada, de quarentena, compus mais 20. Agora faltam só 10 minutos”, conta ele.

“É claro que o isolamento ajudou, mas essa já é a minha vida. Nossa vida já é de quarentena”, diz, enquanto envia, pelo WhatsApp, um meme que mostra a foto de um homem em frente ao teclado com a inscrição “um compositor”. Abaixo, a frase muda para “um compositor em quarentena”, mas a foto é exatamente igual.

Professor de composição na Faculdade Santa Marcelina e de análise musical na Escola Municipal de Música, vinculada ao Theatro, Martinelli já elabora aulas à distância para seus alunos. E os três cantores de “Navalha na Carne” também estão recebendo os trechos já prontos. Além deles, cerca de 40 músicos farão parte da orquestra para a ópera.

Enquanto escreve as notas para cada um deles, cantores e instrumentos, o compositor fica na expectativa: “Talvez até junho as coisas já estejam normalizadas, será?”

A novela “Nos Tempos do Imperador”, da Rede Globo, que estrearia na próxima segunda (30) foi adiada, mas ainda não há nova data. Vários capítulos já haviam sido gravados quando a emissora tomou a necessária decisão de interromper os trabalhos, na segunda passada (16).

Entre as atrizes que foram para estão a veterana Mariana Ximenez, que faz uma condessa, e a estreante Any Maia, uma das filhas do imperador Dom Pedro 2º. A novela, aliás, é uma continuação de “Novo Mundo”, exibida em 2017 e que trazia a história de Dom Pedro 1º. Três personagens fictícios daquela reaparecem na nova novela.

Prestes a fazer 12 anos, Any Maia veio do Ceará para atuar em sua primeira novela. A estreia seria festejada com uma festa. Meu fã clube do Instagram já tinha feito convites e reservado local para fãs, amigos e familiares se reunirem em Fortaleza, com um grande telão”, ela conta.

“Bem, minha mãe me explicou direitinho que as gravações iriam ser adiadas até tudo voltar ao normal. Fiquei um pouquinho triste, porque para mim os dias de gravação são meus melhores momentos. Mas entendi, e acredito que em breve tudo voltará ao normal.”

Ximenez concorda com a avaliação da atriz mirim e a conforta: “A Any é um talento! Falaria para ela que já já estaremos colocando nossas personagens em cena e mostrando para o público a linda relação delas”.

“Estamos passando por um momento particular, que nos faz refletir e repensar a forma de viver. Ainda diria que devemos parabenizar a todos jornalistas e suas equipes pela competente cobertura que nos faz ter notícias o tempo inteiro. Além também de todos os profissionais da saúde e abastecimentos de alimentos - verdadeiros guerreiros!”, finaliza.​

AFETADOS PELO VÍRUS

Bivolt 
A rapper estava prestes a lançar seu primeiro disco, mas teve shows e eventos de lançamento cancelados

Macelo Vicintin 
O autor iniciante havia conseguido publicar seu romance ‘As Sombras de Ontem’ pela Companhia das Letras, mas o lançamento foi adiado

‘Três Verões’ 
O mais recente longa de Sandra Kogut, protagonizado por Regina Casé, estrearia neste mês, mas agora não tem mais data de estreia

Osgêmeos 
Os irmãos Gustavo e Otávio Pandolfo seriam alvo da maior retrospectiva de sua carreira, mas a Pinacoteca agora ficará fechada

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