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Cinema

Max von Sydow me fez ver que ser ator tinha a ver com outras coisas além da falta de pudor

'O garoto tímido transformado em ator', assim costumava se apresentar o gigante sueco

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Guilherme Weber

"O garoto tímido transformado em ator.” Assim costumava se apresentar o gigante sueco Max von Sydow, que deixou o mundo para se transformar definitivamente em lenda.

Na minha cabeça de menino, começando a me interessar por cinema e que havia parado, petrificado, na frente da foto daquele homem jogando xadrez com a morte, aquela entrevista tinha a força de uma epifania. Então ser ator tinha a ver com outras coisas além da falta de pudor. Tinha a ver também com timidez, sutileza, melancolia.

Imediatamente aquele ator se tornou uma referência, “fonte externa que esclarece os signos”. E assim me seguiu, jorrando, Max von Sydow. “O Sétimo Selo” foi o primeiro trabalho dele que vi, ainda garoto, em um cineclube de Curitiba que eu frequentava com a fé de quem ia à igreja.

Não existiam os diretores. Eram os atores que me mostravam o cinema —e sem conhecer Bergman eu já conhecia o que mais amaria em sua obra. Ver o rosto de Von Sydow em prata na película que tinha viajado até o sul do Brasil teve a força de outra epifania. De reconhecer em um ator os traços do meu avô paterno, imigrante austríaco.

Segui o filme, então, projetando o doméstico no épico, coração aos pulos, imaginando também me ver ali, no rosto do cavaleiro medieval que aposta com a Morte e que, a distraindo, salva a família de artistas. Uma sessão de cinema com fecundidade de fantasia. Max von Sydow como aquele cavaleiro agora tinha para mim a concretude poética de uma metáfora. Era quem salvava a arte da morte.

Muitos me falaram ao longo dos anos que eu me parecia com ele, o rosto longo, os olhos azuis. E assim eu sempre gostei de acreditar. Vendo-o na tela eu intuía a sua altura, depois confirmada: 1,93 metro, cravada a mesma que a minha. E a de meu avô.

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O ator e diretor Guilherme Weber - Zé Carlos Barretta/Folhapress

Anos depois, estreando em um set de filmagem, ouvi de um impaciente diretor de fotografia, sobre a dificuldade de enquadrar minha altura. Na arrogância da minha juventude respondi: “Sven Nykvist jamais diria isso para Max von Sydow”. A citação aos nomes lendários provocou silêncio no set. Esta frase seguiu comigo para sempre, em silêncio, como um mantra, diante de atrizes se equilibrando em três tabelas de madeira, saltos de sapatos serrados às pressas e tripés se estendendo aos suspiros de diretores de fotografia.

Pois quando víamos o gigante sueco se desdobrando para se levantar, ocupando toda a extensão vertical da tela, era como testemunhar o instante exato em que uma ideia adquire contornos concretos e avassaladores.

Saber que tínhamos a mesma altura foi uma espécie de presente, de prazer secreto e de profunda segurança. Mas foi seu rosto, primeiro em um cartaz e depois em tantos filmes, que me pôs em reverência.

Bergman reduziu o cinema ao mínimo para buscar o máximo de expressividade —câmera, rosto e a distância entre eles. E o minimalismo ímpar do rosto de seu principal ator era palco, tela, ossos, sangue, espelho, caverna e tudo o mais que precisávamos e também o que não sabíamos precisar.

Olhar para aquele rosto era a síntese do poder do cinema. Um percurso entre o sono e a vigília, o devaneio e o sonho, a memória e o desconhecido, a simetria e a desordem, o real e o imaginário. E continha também algo de profanador, como se descobríssemos naqueles brilhantes olhos azuis, segredos do tempo e da morte, da crueldade instintiva e do prazer nesse mundo caótico.

Todos os seus personagens nos contam um pouco sobre esses segredos em criações que não imploram empatia, mas almejam a compreensão do peso terrível que carregam e que nunca poderão largar pelo caminho, para que nós espectadores possamos avançar mais um pouco.

Dizer “Adeus, Max” é para mim dizer adeus a uma hora fundante. Botá-la definitivamente na memória. Na juventude, em última análise, a gente sempre tem que se medir em relação às outras pessoas, não haveria outro critério. E de vez em quando alguém lhe ensinava algo a respeito de si próprio. Obrigado por tanto, Max.

Guilherme Weber é ator e diretor de teatro e de cinema

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