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Músicos tentam superar crise econômica do coronavírus com shows online pagos

'Enquanto não há shows, as pessoas têm quebrado a cabeça para resolver esse problema', diz dono de gravadora

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Amanda Cavalcanti
São Paulo | UOL

Quando as notícias sobre o contágio do novo coronavírus chegaram ao Brasil, o quarteto brasiliense Scalene levou um susto ao ver todos os seus shows marcados para os próximos meses sendo cancelados. Entre shows já anunciados e negociações em andamento, 15 apresentações caíram.

Com a impossibilidade de se apresentar ao vivo, logo surgiu outra ideia —gravar o novo álbum da banda. Mas a doença se alastrava pelo país e, ao longo das semanas, medidas mais drásticas foram tomadas, como o fechamento de grande parte do comércio e o isolamento no país inteiro.

"Logo, entendemos que até sair de casa para ir para o estúdio seria correr risco e colocar os os outros em risco", diz Tomás Bertoni, um dos guitarristas da Scalene. "Neste começo, foi confuso até explicar que não adiantaria adiar shows para junho ou julho porque não temos uma previsão de normalização."

A Scalene não foi, de longe, a única banda afetada. Ao longo do mês de março, vimos incontáveis shows, nacionais e internacionais, grandes —alô, Lollapalooza e Billie Eilish— e pequenos, serem cancelados e lançamentos de álbuns sendo adiados.

A perspectiva era assustadora. Os artistas tomaram uma atitude rápida para tentar lidar com a ausência de shows, realizando apresentações ao vivo em redes sociais como Instagram, YouTube e Facebook para entreter os fãs. Mas o tédio no isolamento passou a ser uma preocupação secundária conforme a situação piorava e uma só questão começou a tomar a cabeça de trabalhadores informais por todo o país —como se manter financeiramente durante uma crise dessas?

"A grana vinda de shows é a principal fonte de renda dos artistas, junto com o merchandising", diz Fernando Dotta, um dos donos do selo independente paulistano Balaclava Records e da casa de shows Breve, na zona oeste de São Paulo. "Enquanto não há shows, as pessoas têm cada vez mais quebrado a cabeça para resolver esse problema."

Em vez de ser mais uma bolinha no congestionamento das apresentações ao vivo que tomam o Instagram, a Scalene começou agora o projeto "Respirando na Quarentena", que conta não só com pequenos shows do grupo, mas também outras atividades, como a participação de convidados e conversas sobre os trabalhos da banda.

Na quarta, o grupo assistiu junto com os fãs à final da Copa do Mundo de 1970, em que o Brasil foi campeão vencendo a Itália. "Ficamos falando sobre esporte e ditadura, interagindo com os fãs e vendo futebol, que é algo que gostamos de fazer às quartas-feira", diz Tomás Bertoni, guitarrista da Scalene.

O projeto acontece num grupo secreto no Facebook que só pode ser acessado através de uma doação mensal no valor de R$ 12. O valor também tem como objetivo a viabilização do projeto "The Street Store DF", que beneficia pessoas em vulnerabilidade social e é apadrinhado pela banda desde 2017.

"Não é só sobre tentar nos manter, mas também manter a nossa equipe e levantar uma grana para tentar doar para um projeto que apoiamos faz tempo. Não queremos lucrar com isso, mas também precisamos arcar com os custos", diz o guitarrista.

Dotta, o empresário, comenta que a intensificação de conteúdo disponibilizado ao público é importante para fãs fiéis, embora possa gerar saturação . "Apesar de não haver shows, as pessoas estão sedentas por material. Essa intensificação tem um impacto forte nos ouvintes mensais, esse é um dos motivos pelos quais não estamos descartando fazer lançamentos nesse período", diz, citando a pequena parcela que os músicos recebem dos serviços de streaming.

A Balaclava Records funciona não apenas como selo, mas também produtora de diversos shows nacionais e internacionais e inclusive de seu próprio festival, o Balaclava Fest. Com os cancelamentos e adiamentos, Dotta e seu sócio, Rafael Farah, foram afetados em diversas frentes —como selo, como produtora, como casa de shows. Os três shows que eles trariam neste primeiro semestre —da promissora banda de rock britânica Black Midi, do duo americano Black Pumas e do trio de pop britânico Kero Kero Bonito— foram desmarcados ou adiados.

"É um momento bem difícil, porque não conseguimos planejar muito para o futuro e o nosso trabalho é feito com muita antecedência. Os artistas que trazemos para o Brasil às vezes vêm de conversas de anos com bookers, as pessoas que fazem o agendamento dos shows", diz o produtor.

A solução da Balaclava têm sido se centrar em outras frentes do selo —lançamentos de singles como o da banda Terno Rei com o trio Tuyo, que será lançado nesta sexta (27), reformulação do site do selo para a venda de merchandising, estimular o crowdfunding e investir em apresentações ao vivo mais funcionais e informacionais. Há uma semana, o selo também disponibilizou todo o seu catálogo para venda no Bandcamp.

Essa decisão foi tomada graças a uma ação da plataforma, que, por um dia, direcionou todo o lucro das vendas diretamente aos artistas, não cobrando a taxa usual de operação.

"Nós tivemos que adaptar os valores ao que faz mais sentido para o mercado brasileiro, colocando os discos à venda por US$ 3 ou US$ 4 (R$ 15 a R$ 20). Mas é uma medida bem positiva, e seria ideal que outras plataformas também fizessem isso para que tudo chegue ao artista com o máximo valor que puder", diz Dotta.

Bertoni, o guitarrista, concorda. "O quanto a intensificação de plays em plataformas como o Spotify ajuda é um pouco superestimado, não é o que vai resolver. É claro que toda quantia ajuda, mas se o Spotify, o Deezer e o YouTube fizessem campanhas como a do Bandcamp seria uma parada que daria um impacto, porque o play em si tem um valor muito pequeno", ele diz.

Nenhuma das plataformas citadas pelo músico tem medidas de repasse de lucros com plays para artistas, mas as empresas estão cientes do que está acontecendo e começam a se movimentar para ajudar os artistas.

Nesta semana, o Spotify anunciou o projeto Spotify Covid-19 Music Relief, com o objetivo de juntar US$ 10 milhões, quase R$ 50 milhões, para ONGs que promovem alívio financeiro para comunidades musicais necessitadas, como MusiCares, PRS Foundation e Help Musicians.

Sandra Gimenez, diretora de parcerias musicais do YouTube para a América Latina, também garante que a plataforma está pensando em maneiras de ajudar os artistas. "Estamos ajudando todos os nossos parceiros, incluindo gravadoras, artistas, compositores e produtores, a usar o 'live streaming' de forma fácil e direta em seus canais do YouTube para se comunicar com seus públicos, por exemplo. As lives são monetizadas dentro da plataforma", afirmou ela.

A plataforma também tem ajustado as campanhas publicitárias para que os repasses aos artistas sejam maiores.

As previsões para o futuro são incertas, mas todos os lados parecem acreditar que a indústria da música ainda passará por grandes baques ao longo dos próximos meses. Porém a arte, que neste momento serve de grande alívio, também pode servir de pontapé para que pensemos em como pode ser diferente a partir de agora.

"As pessoas vão entender que a conta do mundo não está fechando, que o formato em que nós nos organizamos não está fazendo sentido e que isso pode dar merda como está dando agora. Acho que a música pode estar na vanguarda dessa nova organização de mundo", completa Bertoni.

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