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Cinema

Repudiar Polanski não é 'cancelar', mas dar um basta à cultura da hipocrisia

Sou mulher antes de ser crítica e professora de cinema, e confesso que considerei até me recusar a escrever este texto

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Uma série de questões rondam a estreia de “O Oficial e o Espião”, que chega agora aos cinemas. O filme, que garantiu a seu diretor o prêmio de melhor realização no César, equivalente francês do Oscar, não é, em si, polêmico. Já a premiação do cineasta que o dirigiu se revelou algo insustentável.

Primeiro, porque a existência do longa evidencia um desejo de identificação entre seu realizador e o protagonista, um inocente injustamente condenado. Segundo, porque o troféu foi dado para o “melhor diretor” —e não para o melhor filme, abalando os argumentos daqueles pleiteiam por uma separação entre “obra” e “artista”.

Bertrand Guay
Atriz Adele Haenel, que se retirou da cerimônia do César, após Roman Polanski ser premiado como melhor diretor - Bertrand Guay/AFP

“O Oficial e o Espião” narra de maneira bem convencional os eventos ligados ao chamado caso Dreyfus, que abalaram a França no final do século 19.

De origem judaica, o capitão do Exército francês Alfred Dreyfus é acusado de traição. Baseado em provas falsas, o tribunal militar o condena a prisão perpétua em uma ilha isolada. Quando um novo chefe assume o serviço de inteligência, percebe a injustiça e batalha para reabrir o caso. Será também preso, antes de conseguir a reabilitação para si e para Dreyfus.

Se o filme é assunto, isso se deve menos a suas qualidades estéticas e políticas do que a tudo que acontece ao seu redor. Preso nos Estados Unidos nos anos 1970 por abusar sexualmente de uma garota de 13 anos e liberado enquanto aguardava julgamento, o cineasta fugiu para a Europa e jamais cumpriu sua pena.

No ano passado, surgiu uma nova acusação contra ele. No lançamento francês de “O Oficial e o Espião”, em novembro, houve piquetes em cinemas.

Os protestos não impediram que o filme fosse visto —foram vendidos 1,5 milhão de ingressos na França—, mas contribuíram para que houvesse debate sobre assédio, pedofilia e abuso de poder no meio cinematográfico.

Quando o filme foi indicado a 12 prêmios do César, a direção da Academia Francesa se demitiu. Pior foi a cerimônia, em 28 de fevereiro. Constrangida por apresentar uma edição tão controversa da premiação, a humorista Florence Foresti passou a noite buscando formas de não pronunciar o nome do cineasta octogenário. Quando precisava se referir a ele, dizia “Popol”. O leitor terá percebido que também evito escrever o seu nome.

Sou mulher antes de ser crítica e professora de cinema. E confesso que considerei, num ato de boicote, até me recusar a escrever este texto. Ou a fazer isso sem assistir ao filme.

Vi, por fim, “O Oficial e o Espião”. Não encontro, porém, interesse em uma análise intrínseca. Mais vale discutir a maneira como o longa se insere no contexto do cinema francês e no mundo do século 21. O prêmio da Academia Francesa indica que as novidades estéticas e políticas da obra estão alhures.

É preciso falar, por exemplo, do texto sobre a cerimônia publicado pela escritora Virginie Despentes no jornal Libération. “A mensagem está no orçamento”, ela diz.

De fato, a produção do longa de Roman Polanski angariou € 25 milhões (cerca de R$ 130,5), valor muito superior ao de seus concorrentes —“Os Miseráveis”, eleito melhor filme, custou € 1 milhão (R$ 5,2 mi).

Despentes argumenta que só um consórcio reunindo os mais poderosos seria capaz de arrecadar tal montante. E por isso ela vê o longa como uma mensagem dos “patrões, chefes e poderosos” àquelas que se recusam a abaixar a cabeça.

Atenta à maneira lacunar como a história do cinema é escrita, não me identifico com a chamada “cultura do cancelamento”. Não consigo concordar que sejam apagados da historiografia filmes como “O Bebê de Rosemary”, de 1968, ou “Chinatown”, de 1974.

Só posso escrever sobre “O Oficial e o Espião” desde a perspectiva que é a minha, feminista mais do que feminina. E a meus olhos parece claro o desejo, por parte de “Popol”, de paralelismo entre sua história e a de Dreyfus.

Seria uma tentativa (subliminar? desonesta?) de se reivindicar inocente, injustiçado, vítima. Isso fica evidente diante do título francês, “J’Accuse”, tomado de empréstimo do artigo que Émile Zola publicado em 1898 no L’Aurore, num capítulo importante do caso.

Haveria comparação possível entre um oficial preso por anos numa ilha, num comprovado ato de antissemitismo do Exército, e um cineasta atacado por uma centena de feministas que bloquearam algumas salas de cinema?

Releio o artigo de Virginie Despentes. “É grotesco, é insultante, é ignóbil, mas não é surpreendente”, ela escreve.

“O Oficial e o Espião” é um filme que escancara a hipocrisia da sociedade francesa. Despentes chama a atenção para a atitude de Adèle Haenel, que se levanta ao ouvir o anúncio do prêmio de melhor realização e deixa a sala. A atriz protagonizara “Retrato de uma Jovem em Chamas”, de Céline Sciamma, que teve 11 indicações ao prêmio.

Como se sabe, no final do ano passado, a atriz foi a público denunciar os assédios que sofrera do cineasta Christophe Ruggia entre 2001 e 2004, quando ela tinha entre 12 e 15 anos. “Se ‘Retrato de uma Jovem em Chamas’ não recebeu nenhum dos grandes prêmios, é porque Haenel falou e que se trata de fazer com que as vítimas compreendam que é melhor pensar bem antes de romper a lei do silêncio”, concluiu Despentes.

Dessa forma, mesmo não levando os grandes troféus do César, o filme de Sciamma e Haenel é responsável pelas maiores novidades do cinema francês do ano passado. Por que não falamos mais desse cinema em ebulição do que do envelhecido Polanski?

As atitudes de Adèle Haenel ou de Florence Foresti, a apresentadora que deixou o palco antes do fim da cerimônia, enojada, não podem ser resumidas como “cultura do cancelamento”. É um basta à cultura da hipocrisia e da violência contra as mulheres.

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