Descrição de chapéu

Teatro online fica longe da experiência completa, mas é a opção possível

Rigidez do registro filmado prende o olhar do espectador e quebra o encanto da apresentação ao vivo

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São Paulo

É o ano de 2002, e adiante no palco está o jovem ator britânico Adrian Lester como Hamlet, dirigido pelo lendário Peter Brook, na montagem do grupo de teatro dos Bouffes du Nord.

Saltamos para 2008 e à frente se vê a companhia do Théâtre du Soleil, uma das mais conceituadas do mundo, apresentando “Les Ephémères” na França, sob a batuta de Ariane Mnouchkine. Logo a seguir, o Berliner Ensemble, grupo fundado por Brecht, entra para interpretar “Medeia”. E, horas depois, vem à cena o grupo Galpão com sua montagem histórica de “Romeu e Julieta” no Shakespeare’s Globe.

Para nenhuma dessas viagens no espaço-tempo foi preciso, é lógico, sair da frente do computador. Companhias teatrais de todo o mundo têm disponibilizado, de forma bastante atípica, registros das principais montagens de seu repertório na internet, como parte dos esforços de manter viva a chama do teatro durante a quarentena.

pessoas fazem hamlet no palco avermelhado
Cena da montagem "Hamlet", do diretor inglês Peter Brook. - Divulgação

É uma prática que não só segura o interesse dos amantes dessa arte como permite que estes tenham contato com performances que, de outro modo, dificilmente veriam.

Boa parte das montagens acima foram recomendadas nas redes sociais pelo Grupo Tapa, tradicional companhia paulistana que tem feito uma intensa atividade de formação online —o que, além de aulas teóricas, significa oferecer uma curadoria de sugestões para que profissionais dos palcos aprendam com os melhores do ramo.

É uma oportunidade preciosa, mas é claro que não traz a experiência completa. Como costuma afirmar a professora Maria Silvia Betti, que se especializa em dramaturgia no Departamento de Letras Modernas da USP, “teatro é como aula, só existe com tempo e espaço compartilhado” –ela ressalva, contudo, que repetia isso num tempo pré-pandemia.

Para a experiência teatral é preciso ter pessoas respirando o mesmo ar, continua a professora, e quem assistir ao mesmo espetáculo quatro vezes numa semana verá quatro coisas diferentes.

A rigidez do registro filmado quebra o encanto (e a tensão) da apresentação ao vivo e prende o olhar do espectador. A câmera, o zoom, os cortes se metem no meio da relação com os atores. E, enquanto é intrínseco ao cinema escolher milimetricamente qual imagem vai enquadrar, o olhar solto faz parte do usufruto da peça.

O público não é obrigado a ver o que está na boca de cena, que é o espaço natural de destaque; às vezes, ele quer o prazer de passear, livre, pelo que os atores estão fazendo ao fundo, ou por detalhes do cenário. Outras vezes quer até deixar o olho escapar para as reações da própria plateia (o que no momento só pode significar os companheiros de sofá).

Ao assistir a uma performance recém-disponibilizada pelo Cirque du Soleil em sua nova plataforma online —mesmo ponderando que circo tenha sua linguagem própria—, é agoniante a sensação de ter a visão limitada pelo que a câmera decide enfocar. A vontade é se deixar tomar pela exuberância febril do espetáculo, e a experiência virtual acaba castradora.

No cinema, a expressão “teatro filmado” não costuma ser elogiosa. Quer dizer que o roteiro dramatúrgico está no suporte errado e não explora todas as possibilidades que um filme oferece.

É claro que houve cineastas que souberam aproveitar soberbamente textos que se encaixariam bem no teatro (vêm à mente Rainer Werner Fassbinder e Sidney Lumet), mas o casamento feliz é mais exceção do que regra.

Esse teatro filmado da era coronavírus se diferencia, é claro, por ser a única alternativa possível. Não há mais como ver montagens encerradas há anos, e pouquíssimos brasileiros conseguiriam acompanhar o trabalho de grupos europeus se não fosse o streaming.

E para quem é profissional, há aprendizado em observar o uso do espaço cênico, a iluminação, a sintaxe da peça mesmo que não se entenda uma palavra do que está sendo dito, como salienta a professora Betti.

Há que se lembrar ainda que o vídeo é um dos únicos meios que grupos de teatro, impedidos de subir aos palcos e ameaçados pela incerteza financeira, têm hoje de chegar a seu público. E isso já é motivo para acender, mesmo de casa, as luzes da ribalta.

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