Descrição de chapéu The New York Times

Nos EUA, artistas afetados pela crise do coronavírus não terão ajuda de Trump

Cenário atual é diferente do que aconteceu com profissionais da cultura durante Grande Depressão, sob Roosevelt

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Julia Jacobs
The New York Times

No loft por sobre a fábrica de picles, dezenas de mulheres passavam o dia sentadas aos seus teares, ou circulando em torno dos caldeirões revestidos de cobre que continham tinturas, produzindo cortinas e tapetes para o governo.

Isso aconteceu em San Francisco, no começo da década de 1940, e Margery Magnani, que tinha 20 e poucos anos e um diploma em literatura francesa, terminou sendo promovida a capataz, supervisionando até 95 outras operárias.

A maioria delas tinha idade suficiente para ser sua mãe ou avó. Algumas costuravam a mão pedaços cortados de velhos uniformes militares. Outras penduravam as peças concluídas em longos varais, para que se desamassassem e se tornassem mais apresentáveis.

As mulheres mais jovens trabalhavam em tanques de 280 litros, tingindo cerca de dez quilos de linha por dia, em tons de vermelho forte e verde. O material terminava sendo usado para produzir cortinas ou tapetes para os clubes do exército, ou material para decorar clínicas de tratamento de doenças venéreas.

Tudo costumava transcorrer sem dificuldades —exceto nos dias em que a tintura escorria para o andar de baixo, onde eram produzidos picles.

“O pessoal de lá subia gritando de raiva, porque de repente havia água vermelha e azul escorrendo para baixo”, contou Magnani em um depoimento de história oral gravado para o Arquivo Smithsonian de Arte Americana.

As tecelãs eram parte de um programa federal de empregos lançado em outro momento de incerteza, e concebido para garantir trabalho para pintores e escultores, artistas, músicos, escritores e artesãos que estavam enfrentando dificuldade para ganhar a vida.

Por cerca de uma década, começando na Grande Depressão da década de 1930, uma geração de artistas recebeu salários do governo sob os auspícios do New Deal do presidente Franklin Roosevelt.

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Elenco ensaia para musical 'The Cradle Will Rock', peça que foi financiada pelo Projeto Federal de Arte, parte do plano de incentivos de Roosevelt em meio à Grande Depressão - Library of Congress/via NYT

Eles realizavam trabalhos como ensinar arte a crianças ou pintar murais em escolas e agências de correio.

“No geral, o que os unia era uma coisa muito simples e básica: todos precisavam comer”, disse Burgoyne Diller, que supervisionava a produção de murais para o Projeto Federal de Arte, em um depoimento de história oral.

Voltaram a surgir discussões, em alguns círculos, sobre a provisão de assistência federal adicional aos artistas, porque a pandemia afetou fortemente suas fontes de renda. Alguns legisladores, por exemplo, queriam US$ 4 bilhões em verbas de emergência para a arte como parte do pacote de estímulo contra a pandemia.

“Vai haver muita gente desempregada entre aqueles que ganham a vida como músicos, ou trabalham em teatros comunitários”, disse a deputada Chellie Pingree, democrata do estado do Maine, que lidera a comissão das artes do Congresso, no mês passado. “Não podemos lhes dar as costas.”

Mas poucos defensores das artes estão otimistas quanto à possibilidade de que um programa tão abrangente e generoso quanto o New Deal aconteça agora.

“Não estou certa de que seria possível conseguir a aprovação do Congresso a qualquer coisa desse tipo”, disse Barbara Bernstein, fundadora do New Deal Art Registry, um guia online sobre a arte daquela era. “Especialmente não a algo sobre o que é tão fácil zombar, como um programa de apoio à arte.”

Para começar, o presidente Donald Trump se posicionou como antagonista das artes, pelo menos quando o assunto são verbas públicas para elas. Em cada uma de suas propostas orçamentárias anuais, desde que assumiu a presidência, ele apelou pelo fechamento do National Endowment for the Arts, o NEA, e do National Endowment for the Humanities, o NEH, duas instituições federais que oferecem verbas às artes e ciências humanas.

Nikki Haley, ex-embaixadora dos Estados Unidos à ONU e membro do Partido Republicano, reagiu com críticas quando o Congresso concluiu seu projeto de assistência em valor de US$ 2 trilhões e reservou US$ 250 milhões para a arte, o que incluiria a NEA, NEH e a TV e rádio públicas dos Estados Unidos —menos de 7% da quantia que legisladores como Pingree haviam proposto.

“Quantas pessoas mais poderiam ter sido ajudadas com esse dinheiro?”, ela tuitou.

O clima era diferente quanto o programa do New Deal foi aprovado. Os conservadores daquela era certamente consideravam alguns artistas como esquerdistas perigosamente radicais, mas o programa de Roosevelt era só uma pequena parte de uma imensa iniciativa que incluía verbas para projetos como novas estradas e pontes.

O programa foi promovido por um presidente muito popular cujo partido controlava as duas casas do Congresso. E veio em um período no qual algumas pessoas no governo viam benefícios para o moral da população em criar um estilo artístico verdadeiramente “americano”, que nada mais devesse à Europa, disse Bernstein.

Naquela época, tantos programas desembolsavam verbas para as artes, sob uma legião de acrônimos, que nem mesmo os artistas beneficiados conseguiam se lembrar dos nomes todos.

A Administração da Segurança Agrícola, por exemplo, foi a fonte improvável de projetos que resultaram em fotografias famosas, como “Mãe Migrante”, de Dorothea Lange e “American Gothic”, de Gordon Parks.

Mas o principal propulsor das verbas para a arte foi o Projeto de Arte Federal, da Administração para o Progresso do Emprego. O projeto financiou cerca de 2.500 mil murais, 18,8 mil esculturas e 108 mil pinturas e desenhos.

Milhares de designs originais para cartazes foram criados para divulgar zoológicos locais, palestras sobre livros em bibliotecas, ou para encorajar as pessoas a passarem por exames de sífilis e a reportar quando tivessem sido mordidas por cachorros.

O Projeto Federal Número Um —um programa que cobria financiamento para as artes em diversas áreas e recebeu US$ 27 milhões em verbas em 1935— surgiu em tempo para dar apoio ao trabalho de Berenice Abbott.

Fotógrafa nascida no estado de Ohio, ela teve uma ideia ambiciosa que envolvia fotografar grandes áreas urbanas. Ela havia enviado centenas de cartas solicitando verbas, sem sucesso.

“Mas 1929 não era o ano para iniciar novas empreitadas”, escreveu Abbott em “Art for the Millions”, uma coletânea de ensaios escritos por artistas e administradores de artes da era do New Deal.

Mais tarde, com verbas federais, Abbott começou a montar suas câmeras em ruas lotadas, em escadas de incêndio precárias e em telhados perigosos a fim de capturar os grandes traços arquitetônicos da cidade na década de 1930, e o produto final de seu trabalho foi intitulado “Changing New York”.

O artista Charles Alston também se viu sem rumo depois de se formar no Columbia College no mesmo ano em que o mercado de ações entrou em colapso.

“No campus, você leva uma vida isolada; seu mundo é pequeno”, disse Alston em uma história oral gravada em 1965. “E aí você sai de lá e descobre que a coisa toda desabou em torno de você.”

Alston por fim se tornou supervisor de um projeto bancado por verbas federais para criar murais no Harlem Hospital Center. Em 1936, ele criou o seu mural —um díptico complexo, em tom sépia— para o saguão do novo pavilhão feminino do hospital. Um dos painéis (“A Magia da Medicina”) ele ilustrou com imagens de práticas tradicionais de cura bem como com uma escultura que era parte de um relicário da cultura fang, do Gabão, no centro da África. Outra peça, “Medicina Moderna”, retratava um microscópio e médicos usando trajes cirúrgicos brancos.

Alston recordou esperar em fila pelo cheque do governo, às vezes na chuva ou no frio gélido, em companhia de artistas como Stuart Davis e Arshile Gorky. (Ele descreveu Gorky como “um cara de aparência saturnina”, com um longo casaco preto, chapéu preto de abas largas e um grande bigode.) O ritual ajudava a criar uma identidade coletiva entre os artistas.

A Guilda de Artistas do Harlem organizava reuniões para discutir os dilemas artísticos que seus integrantes enfrentavam e pressionar a Administração para o Progresso do Emprego a contratar mais artistas negros.

O estúdio de Alston na rua 143 servia como ponto de reunião para debates animados entre artistas e escritores como Ralph Ellison e Claude McKay —a vasta maioria dos quais unidos por sua participação em projetos de arte do governo.

Naturalmente, os egos e as crenças políticas dos artistas ocasionalmente conflitavam com aquilo que se espera de um empregado do governo.

Os trabalhadores burocráticos do governo apareciam nos locais de trabalho dos artistas para garantir que eles estivessem em atividade. Mas alguns artistas preferiam pintar de noite, disse Diller, supervisor de murais em Nova York, e os fiscais os encontravam dormindo no meio do dia.

“Trabalhávamos dia e noite, e nos finais de semana, e, pode acreditar, não éramos bem pagos por isso”, disse Diller em um depoimento de história oral em 1964. “Mas achávamos que aquilo era a coisa mais maravilhosa que podia acontecer.”

E havia também os trabalhos artísticos que terminavam suprimidos de imediato por causarem incômodo.

Os planos para o mural de Alston no Harlem Hospital Center quase foram cancelados quando um superintendente do hospital objetou a um rascunho que mostrava profissionais de saúde de raças diferentes trabalhando juntos.

Alston recorda que o superintendente declarou que a instituição “não era um hospital negro”. Mas, com o apoio da União dos Artistas e outros administradores hospitalares simpáticos à ideia, o mural foi pintado.

Em 1937, a Administração para o Progresso do Emprego cancelou a produção de “The Cradle Will Rock”, definida como “uma peça com música”, escrita por Marc Blitzstein e dirigida por Orson Welles como parte do Projeto Federal de Teatro.

A agência informou que a decisão resultava de uma reorganização burocrática e de cortes de verbas. Mas muita gente acusou o governo de censurar a produção da Broadway porque contava uma história favorável aos sindicatos, que organizam os trabalhadores de uma cidade siderúrgica contra um patrão malévolo.

Seguranças armados da administração foram encarregados de garantir que todos os figurinos, adereços e decorações de cena da peça ficassem trancados no teatro, porque eram considerados propriedade do governo. Isso levou os realizadores a sair correndo em busca de um local privado para abrigar o espetáculo, o que eles terminaram por conseguir.

Na noite marcada para a estreia, Blitzstein tocou a música do espetáculo ao piano, sentado no palco, e os atores cantaram suas partes da plateia, como forma de contornar restrições impostas pelo sindicato dos atores. (Welles deixou o projeto de teatro do governo por conta do episódio.)

Ao avaliar o legado desses programas, sempre houve divisões sobre a uniformidade e a visão utópica demais que o New Deal promovia sobre os Estados Unidos. Boa parte das peças de arte se concentravam em retratos bucólicos de paisagens americanas, ou, como escreveu o historiador da arte Francis O’Connor, “de retratos do trabalhador dedicado e sua bonita família”, vivendo de modo “diligente e feliz em comunidades bem planejadas”.

Depois, quando os Estados Unidos entraram na Segunda Guerra Mundial, certos segmentos dos programas foram reaproveitados para promover os esforços do governo, com artistas produzindo pôsteres em série para instar o público a comprar títulos públicos de guerra ou a “costurar pela vitória”, ou simplesmente promovendo o patriotismo.

Mas ainda assim há muitos exemplos de expressão artística irrestrita.

Na agência do correio de Plymouth, no estado da Pensilvânia, por exemplo, existe um mural chamado “Refeição com Mineiros de Carvão do Passado”, de Jared French, que mostra um grupo de mineiros musculosos —a maioria deles sem camisa e usando calças apertadas— que se banham à beira da água azul, se secam com toalhas e posicionam comida na grama para a refeição. No extremo direito do painel, um homem nu está em pé em um barco, com o que parece ser um chapéu posicionado sobre a virilha.

“As pessoas iam ao correio comprar selos e na parede havia uma obra de arte homoerótica”, disse Bernstein.

Com o avanço dos programas de financiamento à arte do New Deal, a oposição a eles aumentou, e muitos dos argumentos empregados se assemelham aos que formam o debate atual.

O Projeto Federal de Teatro se tornou símbolo da ira do Congresso contra o “desperdício”, os gastos ditos perdulários, do New Deal. Em 1938, o programa se viu sob o microscópio do Comitê de Atividades Antiamericana da Câmara. Legisladores acusaram o projeto de estar sob infiltração comunista, de encenar peças com mensagens socialistas e de empregar pessoas sem treinamento que fingiam ser atores.

No ano seguinte, o Congresso eliminou o projeto de teatro e transferiu aos governos estaduais a responsabilidade por outros projetos. A oposição incluía democratas conservadores do sul do país, e sinalizou o começo do fim das verbas do New Deal para a arte.

A entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial derrubou o número de desempregados, tornando grandes programas de criação de emprego obsoletos. As verbas federais para as artes foram canceladas oficialmente em 1943.

“É notável que os programas tenham durado até 1943”, disse David Woolner, pesquisador sênior do Roosevelt Institute. “No clima político atual —dadas as divisões profundas entre os partidos— tentar implementar um programa desses seria muito difícil.”

Tradução de Paulo Migliacci

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