Mercado de arte agora migra para internet, mas surge conflito de gerações

Enquanto jovens compram online, compradores mais velhos, que têm mais dinheiro, resistem

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Scott Reyburn
Londres | The New York Times

Com tudo o que está acontecendo, os colecionadores internacionais de arte parecem ser as últimas pessoas sobre as quais deveríamos nos preocupar no momento.

Mas esse pequeno grupo de indivíduos endinheirados é a base que sustenta uma indústria mundial que movimenta US$ 60 bilhões ao ano e que, segundo estimativas, envolve 310 mil empresas, que empregam cerca de 3 milhões de pessoas, de acordo com um relatório publicado este ano pela Art Basel e pelo banco UBS. E essa indústria, como tantas outras, está sofrendo.

A pandemia do coronavírus causou uma paralisação quase total do mercado da arte em abril e maio. Leilões e feiras de arte foram adiados ou convertidos em eventos online. As vendas despencaram. Galerias comerciais continuam a fazer negócios por meio de salas virtuais de exibição, mas a receita caiu acentuadamente. Muitas estão cortando empregos e enfrentam a possibilidade de fechar.

Diferentemente da indústria da música e de outros setores do varejo, o mercado da arte demorou a se adaptar à era digital. A singularidade das obras de arte originais faz com que os colecionadores encarem com nervosismo a ideia de comprar peças diretamente de sites sem vê-las em pessoa, especialmente nos níveis mais elevados de preços. Mas agora o setor está tentando persuadir os compradores a gastar milhares —ou mesmo milhões— de dólares online.

Os colecionadores mais jovens, cuja mentalidade é mais digital, são previsivelmente mais receptivos às compras online, ainda que em níveis de preço relativamente baixos. Em contraste, os colecionadores mais experientes, conscientes das questões de proveniência e de conservação que podem existir, continuam ressabiados —e são os gastos deles que fazem o mundo da arte girar.

Como os setores de esporte, turismo e hospedagem, os comerciantes de arte internacionais dependem muito da capacidade dos clientes de viajar e de se reunirem. A Art Basel e o UBS estimam que colecionadores com pelo menos US$ 1 milhão em ativos líquidos compareceram em média a sete feiras de arte no ano passado e a um número semelhante de mostras comerciais. As viagens frequentes, que se tornaram um estilo de vida, agora estão paralisadas, e com elas os bilhões de dólares em gastos que costumavam acompanhá-las.

Algumas galerias reabriram, os leilões ao vivo recomeçaram, em cidades como Berlim, Paris e Hong Kong, e os organizadores de feiras de arte têm a esperança de que seus eventos ao vivo possam ser retomados no quarto trimestre. Mas os organizadores da Art Basel, o principal evento do setor, anunciaram no sábado que a edição de 2020 foi cancelada, depois de a terem transferido de junho para setembro, originalmente. Uma versão online acontecerá neste mês.

Com tantas restrições relacionadas ao vírus ainda em vigor, simulacros digitais dos eventos que mantêm o setor em movimento são a única maneira de manter os negócios em operação. Mas as transações exclusivamente online representam apenas 9% das vendas estimadas em US$ 64,1 bilhões que o mercado registrou no ano passado, de acordo com a Art Basel e o UBS.

“O mercado de arte funcionará totalmente online pelo futuro previsível”, disse Saloni Doshi, 40, uma colecionadora radicada em Mumbai. “E isso não é necessariamente uma coisa negativa”.

“O custo-benefício é bom, o processo é visualmente eficiente, requer menos tempo e pode ser usado democraticamente”, acrescentou Doshi, se referindo à maneira pela qual as plataformas online removem uma aura de exclusividade que pode intimidar os compradores iniciantes. “É questão de tempo que os colecionadores mais velhos se acostumem com isso.”

Doshi disse que comprou online obras de artistas contemporâneos do sul da Ásia, durante o período de confinamento, na faixa de preço dos US$ 10 mil aos US$ 35 mil.

O conflito de gerações entre compradores de idades diferentes pode demorar a se resolver. O Hiscox Online Art Trade Report constatou, em sua edição de 2019, que 29% dos colecionadores com idade inferior a 35 anos que foram entrevistados disseram preferir a experiência de comprar arte online. Em contraste, apenas 10% das pessoas com mais de 60 anos disseram preferir comprar arte online.

“A resistência dos colecionadores mais velhos continua a existir”, disse Anders Petterson, fundador da ArtTactic, empresa de análise de mercado sediada em Londres que preparou o relatório. (A edição de 2020 deve sair este mês.)

“Quando não existe um mundo físico da arte, como substituir essa experiência?”, ele questiona. “As pessoas mais jovens se adaptam com muito mais rapidez”.

Andre Gordts, 69, colecionador de arte contemporânea radicado em Bruxelas, está entre as pessoas que privilegiam o conhecimento adquirido em estreito contato com a arte.

“As iniciativas online não substituirão as feiras ao vivo, os leilões e as exposições”, disse Gordts. “São aceitáveis como forma de distribuir informações, e nada mais”.

“Não comprei peças online até agora”, ele acrescentou. “É preciso contato físico com uma obra de arte para compreender sua essência. Remover o elemento analógico vai acabar com a ideia de colecionar arte”.

Howard Rachofsky, 76, dono de uma coleção de arte moderna e contemporânea digna de um museu, em Dallas, disse que não estava seguro de que um dia voltaria a querer visitar uma feira internacional de arte.

“Os colecionadores mais ativos e vorazes que conheço são pessoas da casa dos 50 à casa dos 80 anos”, ele disse. “Essa é a faixa etária que mais corre riscos, na atual crise de saúde.”

“Não visitarei uma exposição prévia aberta ao público. Não quero correr o risco de adoecer”, disse Rachofsky.

Mas ainda assim ele não adquiriu obras de arte online durante o período de confinamento. “É mais provável que eu vá a uma galeria e tenha uma interação social de pessoa a pessoa”, ele disse. “É um método à moda antiga e continua a ser usado como era anos atrás.”

Tiqui Atencio, uma colecionadora venezuelana radicada em Mônaco que começou a comprar arte na década de 1980, é outra participante experiente do mercado que ainda não adquiriu obras nas plataformas online. Ela disse que as apreciava como fonte de informação.

“Eu digo a mim mesma que nunca vou comprar arte online, mas estou me acostumando à ideia”, diz. “Fico feliz por descobrir artistas emergentes. Estou de olho messe mercado e pensando a respeito”.

“Não vou comprar um quadro de US$ 1 milhão em uma sala online de exposição”, afirma Atencio, que em 2013 vendeu um quadro de Jean-Michel Basquiat na Christie’s por US$ 48,8 milhões.

Ela acrescentou que não venderia quadros online, tampouco. “Se eu tivesse uma obra de arte que vale milhões e milhões de dólares, eu a guardaria.”

A relutância dos colecionadores em oferecer peças excepcionais online, ou comprá-las, resultou em uma redução dramática nas vendas de peças de arte de alto valor durante a pandemia.

Em abril, os calendários de leilões da Sotheby’s, da Christie’s e da Phillips consistiram exclusivamente em leilões online, pela primeira vez na história. A receita total de US$ 44 milhões obtida pelas três casas de leilões foi 92% mais baixa do que o valor do mês de abril de 2019, de acordo com dados fornecidos pela Pi-Ex, empresa de análise do mercado de arte sediada em Londres.

Mas, já que os canais online no momento são a única forma de os compradores adquirirem obras, preços mais altos estão sendo registrados nessa categoria, ainda que as faixas sejam muito mais baixas do que as atingidas nas feiras ou leilões de arte ao vivo.

Em 2 de junho, a Sotheby’s vendeu uma paisagem pintada pelo artista russo Ivan Aivazovsky no século 19 por US$ 2,8 milhões, um recorde de preço de venda para uma peça oferecida exclusivamente via leilão online. Mas o valor fica muito baixo de US$ 48,8 milhões.

“Acredito que muita gente na faixa dos 20, 30 e 40 anos se ajuste melhor a fazer lances online do que os colecionadores mais experientes. Mas nunca vi problemas em comprar peças via catálogos ou online”, disse David Breuer-Weil, 54, artista e colecionador londrino que é parte do crescente número de participantes do mercado de arte que atribui valor semelhante aos canais online e convencionais.

Breuer-Weil disse ter comprado recentemente um amuleto judaico de prata, do século 14, na Espanha, por £ 2.750 libras, cerca de US$ 3.450, em um leilão exclusivamente online.

“O confinamento deu a muitos colecionadores tempo para pesquisar preços que antes eles teriam deixado passar”, disse Breuer-Weil. “Eu teria perdido essa peça se não tivesse passado tantas horas pesquisando online. Em minha opinião, colecionar arte será uma atividade que acontecerá cada vez mais online.”

Mas muitos dos compradores mais velhos ainda não se deixaram convencer. As vendas durante o período de confinamento expuseram um conflito de gerações no mundo dos colecionadores de arte. Até que ele seja resolvido, os valores de venda no mercado de arte também continuarão a passar por um conflito.

The New York Times, tradução de Paulo Migliacci

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