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Doação de Mendes da Rocha tenta salvar obra do Brasil de Bolsonaro

Acervo do arquiteto vai para museu português e desperta protestos de arquitetos e intelectuais

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Há mais de um século, Paris acordava estarrecida com a notícia de que a “Mona Lisa” havia sido roubada do Louvre. Ela só ressurgiria anos depois, descoberta em Florença, quando o ladrão, um italiano que trabalhava no museu francês, tentou vender a tela —Vincenzo Peruggia via o seu rapto da Gioconda como um ato patriótico, de restituição de um tesouro a seu país de origem.

Não estava ainda nas páginas de jornal, mas as redes sociais já ferviam de raiva com outra notícia nesta semana —a de que o acervo do arquiteto Paulo Mendes da Rocha seria doado à Casa da Arquitectura, um museu nos arredores do Porto, bem longe da São Paulo onde o vencedor do Pritzker construiu grande parte de sua obra brutalista e se tornou o maior arquiteto brasileiro vivo hoje.

Seus colegas de profissão, muitos deles professores da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, onde Mendes da Rocha deu aula por tanto tempo que chegou a se tornar quase sinônimo da instituição, lamentaram sua decisão, vendo nela um gesto de desprezo pelo Brasil, que se torna menor sem os desenhos, croquis e esboços dele.

O Brasil, há muito, parece se apequenar diante do mundo, mas essa é outra história. A sensação de déjà-vu agora, no entanto, é candente. Não é a primeira vez que um acervo de importância histórica incontornável deixa o país, seja ele doado ou vendido mesmo.

Houve o “Abaporu”, tela de Tarsila do Amaral hoje sob a guarda do Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires, depois a coleção de Adolpho Leirner, com joias do nosso concretismo e do neoconcretismo, vendida para o Museu de Belas Artes de Houston. Há pouco, o único Jackson Pollock nos trópicos, que era do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, partiu e ainda outra Tarsila, “A Lua”, foi arrematada pelo MoMA, em Nova York, coisa de uns US$ 20 milhões.

O momento para debater partidas e chegadas, aliás, é oportuno. Pouco antes do anúncio da doação de quase 9.000 peças de Mendes da Rocha à instituição portuguesa, a massa falida do banco Santos anunciou que, enfim, vai liquidar o que sobrou de suas obras sob a guarda do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo.

Falamos de peças de Amilcar de Castro, Geraldo de Barros, Frank Stella, Man Ray, Tunga, entre muitos outros, trabalhos conservados a um custo estimado de R$ 20 milhões pelo museu público agora vendidos, nas palavras de uma diretora do museu, como bananas avulsas num grande bazar para saldar dívidas de um banco que deixou um rombo bilionário —o valor das obras, mesmo que o leilão seja um sucesso estrondoso, é só uma gota no oceano de dívida.

E o que uma coisa tem a ver com a outra? O MAC, hoje de mãos amarradas, é da mesma USP que a FAU, também longe de ter qualquer papel de barganha. Enquanto o museu universitário à borda do Ibirapuera consome seus recursos com a folha de pagamento e a manutenção do acervo numa reserva técnica que lutou por anos para adequar e tornar impermeável, a FAU ainda sofre com desafios estruturais de maior gravidade.

Mendes da Rocha não vê ali condições ideais de armazenar seu acervo —basta lembrar os inúmeros problemas de conservação da sede da escola desenhada por Vilanova Artigas e o fato de seu satélite em Higienópolis, um casarão dilapidado, ainda estar interditado aos alunos desde um projeto de restauro ter início.

Se nosso Instituto Brasileiro de Museus, hoje subordinado a um secretário especial da Cultura que levou a polícia à Cinemateca Brasileira, prevê em lei um direito de preferência na aquisição de peças de importância histórica caso elas estejam à venda, esqueceu de destinar verbas para isso. Por que então não evitar agora, por exemplo, que todo o acervo do banco Santos saia das galerias do MAC? Ou por que nossa plutocracia bem nutrida não decide tirar as mãos do bolso para comprar e então doar esse acervo?

No caso do arquiteto, nem é dinheiro o problema. Mendes da Rocha se mostra preocupado com o destino de sua memória num país desmemoriado. A decisão de entregar o acervo a uma instituição com recursos adequados tem a ver com o seu desejo mais que compreensível de que a obra sobreviva aos atropelos e às intempéries do tempo.

Num país que já viu pegar fogo o Museu Nacional, o MAM do Rio, quase todo o acervo de Hélio Oiticica e vê inundar todos os anos uma série de museus nas enchentes de verão, quem garante que a sua memória poderá estar a salvo?

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