Obra afrofuturista de Itamar Assumpção está de volta em luta contra apagamento

Produção completa de músico, com 12 álbuns, está agora disponível nas plataformas de streaming

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Peri Pane
São Paulo

A Sala Guiomar Novaes estava lotada. Quem ficou de fora se espremia na porta com a esperança de ver um pouco do show. O coro do público cantando repetidamente “Se chamá polícia, a boca espuma de ódio”, durante o tempo de um transe, ecoava pelos corredores.

Anelis Assumpção tocava com sua banda Amigos Imaginários na Funarte de São Paulo, então transformada numa zona autônoma temporária por artistas e estudantes depois da extinção do Ministério da Cultura, em 2016.

Naqueles dias de ocupação, o teatro foi rebatizado de Sala Itamar Assumpção. Naquela noite, a memória do artista parecia palpável. Naquele ano, a cantora e compositora Serena Assumpção, sua filha mais velha, fez sua ascensão.

Itamar Assumpção, morto em 2003, faria 71 anos em setembro. Neste mês, sua obra completa foi disponibilizada para streaming nas principais plataformas digitais por iniciativa da compositora e cantora Anelis Assumpção, sua filha mais nova. São 12 discos, incluindo os três póstumos.

“Nossa educação é do apagamento. Esse é o nosso mecanismo. O que eu posso fazer? Estou prestando um serviço cultural e social que é simplesmente de preservação de memória”, diz Anelis sobre a importância de manter a obra de Itamar Assumpção em movimento.

Artista negro, nascido em Tietê, no interior paulista, bisneto de africanos escravizados, músico autodidata, cantor, compositor e autor popular, ícone maior da chamada vanguarda paulista, Itamar abriu caminhos para os seus contemporâneos e as gerações futuras de artistas, tanto por suas criações quanto por seu posicionamento diante do mercado da música.

Há 40 anos, ele praticamente inventava um lugar para o artista independente no cenário cultural com a gravação do disco “Beleléu Leléu Eu”, em 1980, sem o apoio de nenhuma gravadora. Dividindo as despesas para as horas de estúdio e a compra dos rolos de fita com sua companheira, Elizena Brigo de Assumpção, que ficou ao seu lado até o final da vida, ele criou uma das obras-primas da música popular brasileira.

O álbum tem uma vinheta na última faixa em que Itamar apresenta, uma por uma, todas as identidades da banda Isca de Polícia. O compositor inventou arranjos intrincados, executados com um balanço contagiante pelo seu “perigosíssimo bando”. Muitas de suas canções ali virariam clássicos, como “Fico Louco”, “Embalos”, “Baby” e, claro, o hit maior “Nego Dito”, cujo personagem Beleléu, em certa medida, ficou colado à sua imagem no início da carreira.

Homem com terno vermelho dança no palco
O cantor e compositor Itamar Assumpção em 17 de janeiro de 1998 - Divulgação

O encarte do LP, lançado em 1981, trazia uma reprodução do seu título de eleitor e uma navalha. A ironia e o humor corrosivo de algumas letras, assim como o próprio nome da banda, Isca de Polícia, desvelavam uma crítica social que, infelizmente, ainda ressoa no Brasil. Passados 40 anos, prevalecem o racismo estrutural e a violência contra jovens negros com a chancela do Estado.

No ano seguinte, Beleléu reaparece no álbum “Às Próprias Custas S.A”, na faixa “Denúncia dos Santos Silva Beleléu”. Gravado ao vivo, o disco é o registro de um show teatral na Sala Guiomar Novaes, em que se destaca a participação da atriz e cantora Denise Assunção, sua irmã, que também tem um papel brilhante em discos posteriores.

“Era um ser humano tão adverso, tão perfeccionista, tão polêmico e tão profissional, que por isso, muitas vezes, foi mal interpretado. Mas digo que por trás daquela imagem de durão, de ‘Nego Dito’, de Beleléu, vivia um homem frágil, gentil, delicado, cavalheiro, muito romântico, justo e extremamente íntegro em suas convicções”, escreveu Elizena Brigo de Assumpção no livreto que acompanha o box “Caixa Preta”, do Selo Sesc, com todos os seus álbuns em CD.

Muito além da figura do “nego dito”, Itamar Assumpção abordou uma imensa gama de assuntos em sua leitura particular do mundo. Percorreu caminhos interiores mais distantes que da Penha (onde morou a maior parte da vida) até Bremen, na Alemanha, país onde fez turnês.

“Ele sempre falou ‘não sou maldito, faço música popular’. As maiores referência dele, com as quais aprendeu a tocar quando era criança, eram os artistas populares do rádio”, diz Anelis Assumpção. “Ele foi emoldurado pela vanguarda [paulista], que era mais uma vez um movimento completamente eurocentrado, porque ainda não existia a palavra afrofuturismo. Hoje prefiro dizer que ele era afrofuturista.”

Em sua tese de doutorado “Itamar Assumpção e a Encruzilhada Urbana: Negritude e Experimentalismo na Vanguarda Paulista”, Rosa Aparecida do Couto Silva busca demonstrar como “as referências culturais afro-brasileiras são utilizadas de maneira inovadora, a fim de construir uma linguagem musical específica”.

Homem com blusa quadriculada preta e calça de couro canta
O cantor e compositor Itamar Assumpção, durante show em comemorações do aniversário da cidade de São Paulo, em 25 de janeiro de 1991, no Sesc Itaquera, em São Paulo - Adriana Zebrauskas/Folhapress

Quem se perde nos labirintos dos seus versos escritos em letras minúsculas a mão, em muitos dos seus encartes, não sai ileso. Há um mergulho profundo em questões existenciais, nas noites em claro de seu terceiro LP “Sampa Midnight - Isso Não Vai Ficar Assim”, de 1983, em canções como “E o Quico”, “Ideia Fixa” e “Isso Não Vai Ficar Assim”.

Itamar se aprofundou no universo feminino numa perene troca musical e poética com Alice Ruiz (“Milágrimas”, “Sei dos Caminhos”) e Alzira E (“Norte”, “Já que Tem que”), que participou, entre outros, do primeiro disco do artista numa grande gravadora, “Intercontinental! Quem Diria! Só Faltava Essa!!!”, de 1988,e gravou, em 2014, um disco com parcerias inéditas com ele, “O que Vim Fazer Aqui” (do qual tive a honra de participar como músico).

Com uma banda só de mulheres, as Orquídeas do Brasil, ele gravou os três volumes de “Bicho de Sete Cabeças”. Mais tarde iniciou uma trilogia com “Pretobrás - Por que que Eu não Pensei nisso Antes”, de 1998, encerrada com os póstumos “Pretobrás II – Maldito Vírgula” e “ Pretobrás III - Devia Ser Proibido”, ambos de 2010.

“Falo mais de flor que de dor”, canta em “Leonor”. Gravada no disco “Isso Vai Dar Repercussão”, de 2004, com o músico e compositor Naná Vasconcelos, versa sobre sua condição de artista, tema que abordou ao longo de toda a carreira, como em “Batuque”, “Prezadíssimos Ouvintes” (com Domingos Pellegrini), “Vida de Artista” e “Ir para Berlim”.

Cantou sempre altivo, como pensador, em “Sujeito a Chuvas e Trovoadas”, “Penso Logo Sinto”. Ele se encantou em Ataulfo Alves. Cantou seus pares Tim Maia, Hermeto, Melodia, Macalé, Elza, Jamelão, Zé Ketti, Paulinho da Viola e Lou Reed. Cantou os meios, os emails, telegramas, telex, cartas, postais, via Embratel. Cantou num galinheiro, em procissões. Cantou canto de terreiro. Cantou o amor em “Z da Questão, Meu Amor”, “Apaixonite Aguda” e “Tua Boca”. E as dores do amor, com um humor muitas vezes ácido, em “Amanticida”, “Estrupício” e “Ciúme do Perfume”.

Cantou a metrópole, em “Persigo São Paulo” e “Venha até São Paulo”. E, por fim, a própria morte. “Além de servir de mote/ Vim ajudá-lo a assumir de vez/ O seu lado pop/ Então é só decidir se morte é mote/ Pra funk ou xote”, grita a morte em “Anteontem (Melô da U.T.I)".


Músicas de Itamar escolhidas por seus parceiros

“Caboclo da Mata” (com Narciso Assumpção), nunca gravada em disco
“A música que mais gosto do Itamar é essa, simplesmente porque participamos do festival de música em Londrina [4º Festival Universitário Música Popular de Londrina, em 1971], na Universidade Católica, com letra de Narciso Assumpção, melodia de Itamar, Marquinhos do Teatro e eu na expressão corporal e nos atabaques.”
Denise Assunção, mulher de teatro e da música, irmã de Itamar Assumpção, gravou em muitos de seus discos

“Nega Música”, do disco “Beleléu Leléu Eu” (1980)
“Uma música muito marcante para mim, que ele fez para minha irmã Serena, quando ela ia nascer.”
Anelis Assumpção, compositora e cantora, filha mais nova de Itamar, cantou e gravou com o pai

“Fico Louco”, do disco “Beleléu Leléu Eu” (1980)
“Foi a primeira que ouvi falar do Itamar. Em 1981 passou uma novela na TV Bandeirantes chamada ‘Os Adolescentes’, escrita por Ivani Ribeiro. Estava na cozinha e minha mãe estava vendo a novela na sala. A música começou a tocar e fui da cozinha para a sala hipnotizada por aquele som. Fiquei muito impactada, me arrebatou. Comecei a assistir à novela só para ouvir a música.”
Tata Fernades, cantora da banda Orquídeas do Brasil

“Prezadíssimos Ouvintes” (com Domingos Pellegrini), do disco “Sampa Midnight” (1983)
“É bem difícil escolher uma entre tantas , o Itamar tinha um leque bem aberto de temas , mas sugiro ‘Prezadíssimos Ouvintes’ por falar da realidade do compositor popular com muita precisão.”
Luiz Waak, guitarrista, tocou em diversos discos do Itamar Assumpção

“Adeus Pantanal”, do disco “Intercontinental! Quem diria! Era Só o que Faltava!!!” (1988)
“Foi a primeira vez que gravei num disco dele, começo da nossa parceria. Em 1988, cantar isso era grito de atenção e pedido de proteção para a região de onde vim. Hoje mais do que nunca canta em mim sem parar essa música do Itamar.”
Alzira E, compositora e cantora, parceira de Itamar Assumpção

"Zé Pilintra" (com Waly Salomão), do disco “Intercontinental! Quem diria! Era Só o que Faltava!!!” (1988)
“É por vezes um chamamento, outras uma evocação, mais adiante, uma certeza. A melodia e a letra são absolutamente imbricadas, uma perfeição imagética. Abre meu primeiro disco ‘Suzana Salles’, de 1994, com participação dele. Havia um trecho longo no final e Itamar encarnou Zé Pilintra totalmente, gargalhando e por fim ainda cantando um ponto que havia sido sua primeira composição. Itamar, meu parceiro de vida."
Suzana Salles, cantora da Isca de Polícia

"Noite Torta" (Itamar Assumpção), do disco “Bicho de Sete Cabeças Vol. I” (1993)
“Morei em Londres bem na época que começaram as gravações da trilogia. Não voltei a tempo de tirar a foto da capa dos discos, mas consegui gravar todas as guitarras. Ele inseriu uma foto minha 3x4 no encarte, ao lado da letra ‘Noite Torta’. Dali, nasceu meu segundo apelido, Noite Torta.”

Georgia Branco, guitarrista da banda Orquídeas do Brasil
* essa também foi a canção escolhida por Arrigo Barnabé, compositor e parceiro de Itamar

“Pesadelo” (Luiz Chagas), do disco “Pretobrás – Por que que Eu não Pensei Nisso Antes” (1998)
“Quando meu filho Gustavo [Ruiz] veio morar comigo, mostrei algumas composições minhas para ele e acabamos gravando algumas delas com o Flavinho Guaraná. Itamar ouviu ‘Pesadelo’ e a enfiou emocionado no CD ‘Pretobrás’, depois de criar uma percussão eletrônica junto com o Gigante [Brazil].”

Luiz Chagas, jornalista e guitarrista da banda Isca de Polícia

“Noite de Terror” (Getúlio Cortês), do disco “As Próprias Custas S.A” (1982)
“Uma montagem cinematográfica e antropofágica em cima de uma música do repertório de Roberto Carlos, da época da jovem guarda, que revela a genialidade de Itamar em pensar a música e construir arranjos.”
Iara Rennó, compositora e cantora, gravou e cantou com Itamar

“Que Tal o Impossível”, do disco “Pretobrás III – Devia Ser Proibido” (2010)
“Não é exatamente a favorita, a palavra é xodó mesmo. Uma canção quase pop, que parece estar falando de uma paixão leve e, talvez, proibida. Mas que pode também estar falando da atitude de Itamar na vida e na música: sempre propondo o ruído, o novo, o difícil. E por que não? O impossível.”
Alice Ruiz, poeta e parceira de Itamar Assumpção

Peri Pane é cantautor no projeto "Canções Velhas para Embrulhar Peixes", ao lado do poeta arrudA. Apresentou o programa “Ecoprático” (2009), na TV Cultura, ao lado de Anelis Assumpção

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