Entenda como o Instagram se descolou da egotrip para virar uma plataforma ativista

Manuais que ensinam antirracismo, feminismo e outros viralizam e podem indicar novo jeito de fazer política

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Colagem com fotografias recortadas de pessoas protestando em preto e branco com fundo colorido e símbolo do Instagram no alto à esquerda

Ilustração de Silvia Rodrigues

São Paulo

Era início de junho quando o Instagram amanheceu de luto. Como se um balde de tinta preta tivesse sido jogado sobre selfies no espelho e instantâneos sorridentes, quadradinho atrás de quadradinho da rede social foi coberto pela cor. A ação, chamada de #blackoutuesday, era mais uma de protesto contra a morte de George Floyd, sufocado por um policial branco.

Não demorou até que a enxurrada narcisista colorisse de novo a rede social, que acaba de fazer dez anos. Mas, desde de então, as pautas sociais que se esgueiravam entre legendas de fotos e depoimentos nos stories parecem ter ganhado ainda mais força ali.

Em especial depois da viralização de um formato que aqui vamos chamar, na ausência de uma palavra melhor, de pequenos manuais ativistas.

Estes manuais são formados por até dez imagens em sequência, postadas num formato que o Instagram chama de carrossel. Como uma evolução estilosa das apresentações de slide do PowerPoint, eles combinam frases de efeito, cores suaves, fontes fofinhas e uma ou outra imagem ou vídeo.

E explicam de um tudo. Por exemplo, dez expressões que você não sabia que eram racistas. Sete ideias totalmente erradas sobre os povos indígenas. Como destruir o patriarcado e salvar o planeta —ao mesmo tempo.

Mas como o Instagram, até pouco tempo sinônimo de estilos de vida e padrões de beleza irreais, passou a ser visto como um bom lugar para discutir política de verdade?

Uma explicação possível é o fato de que o próprio algoritmo da plataforma favorece o carrossel e, portanto, o compartilhamento desses manuais. A publicitária Mariana de Assis afirma que as postagens com esse formato podem aparecer várias vezes para um mesmo usuário, cada vez com um "slide" diferente, para o tentar convencer a deslizar para o lado. “O carrossel faz as pessoas ficarem mais tempo no Instagram, e é isso o que ele mais quer.”

Além disso, diz Mariane Cara, especialista em semiótica e estrategista de cultura, o fato de os manuais serem formados por uma combinação de textos e imagens faz com que se destaquem em relação à linguagem fotográfica dominante. Mas, observa, eles são “dissonantes dentro da consonância”. “Por mais ativista que seja, a mensagem vai estar imbuída da estética do Instagram”, ela acrescenta.

Pode ser, porém, que o sucesso das tais apresentações de slide ativistas tenha a ver com uma mudança mais profunda. Ela estaria relacionada ao perfil dos usuários do Instagram, que teriam descoberto ali um refúgio das polarizações das redes vizinhas.

“Facebook e Twitter têm ambientes tóxicos”, diz Hailanny Souza, uma das administradoras da página Influência Negra. Discutindo temas que vão de penteados afro a como lidar com parentes racistas, o perfil surgiu há mais ou menos dois anos já no Instagram, ambiente onde é mais “fácil de viralizar e alcançar mais pessoas”, afirma Souza.

Desde o início dos protestos do Black Lives Matter, eles viram seu número de seguidores quase dobrar, de cerca de 60 mil para 100 mil —hoje, eles são 250 mil. Mas será que o formato em que apostam, domesticado para o Instagram e limitado a dez quadrinhos, não prejudica a mensagem que eles querem passar?

“Vejo como uma porta de entrada, uma forma de as pessoas aprenderem e mudarem hábitos”, responde
Souza. “Mas as pessoas também precisam se aprofundar”, ela acrescenta, dizendo que muitas das discussões suscitadas pelas postagens continuam nos comentários e que também é possível tirar dúvidas e pedir indicações para a própria equipe do perfil.

Souza parece ser um exemplo de uma geração que o professor Massimo Di Felice, líder de um grupo de pesquisa sobre ativismo na internet e a democracia nas redes na Universidade de São Paulo, a USP, caracteriza como dotada de um jeito diferente de pensar e fazer política.

Segundo ele, as gerações passadas organizavam e interpretavam o mundo a partir de conceitos, muitos deles dialéticos —direita e esquerda, por exemplo.

Mas a geração de hoje , herdeira de movimentos que nasceram nas redes sociais, como o Occupy Wall Street ou, por aqui, as Jornadas de Junho, busca outro tipo de política, menos relacionada a explicações e mais a experiências.

Ele lembra a ativista adolescente Greta Thurnberg, que viajou até a ONU de barco, e não de avião, ou os vegetarianos, que, para lutar contra o desmatamento das florestas, não comem carne. “A lógica não é mais de militar num partido. É de criar redes a partir da tecnologia para com elas produzir a mudança”, afirma.

Di Felice ressalta que o Instagram é só uma pequena parte de um grande ecossistema de redes sociais. Mas, de fato, essa rede parece ter um apelo maior entre os mais jovens.

Segundo dados do relatório mais recente feito pela Hootsuite em parceria com a We Are Social, cerca de 63% dos usuários do Instagram têm entre 18 e 34 anos, enquanto no Facebook essa porcentagem é de quase 56%. Além disso, uma pesquisa da Pew Research Center do ano passado mostrou que o grupo de usuários que mais cresce no Facebook americano é de idosos.

Isso significa que as discussões sobre política no Instagram não correm o risco de evoluir para os verdadeiros ringues de redes sociais como o Facebook e o Twitter, hoje inundados de fake news?

Assis, a publicitária, afirma que esta é uma questão que merece ser acompanhada de perto. Ela lembra uma pesquisa da Reuters deste ano que mostrou que, pela primeira vez, as redes sociais passaram a televisão como fonte de informação para os brasileiros.

Di Felice também é cauteloso. “Risco sempre se corre. A polarização não veio das redes sociais, mas da nossa cultura política”, afirma o professor.

No entanto, ele acrescenta, no Instagram, tanto o tamanho dos textos quanto o diálogo entre os usuários são muito mais limitados. O que domina a conversa ali é a imagem. “E polarizar uma imagem é difícil. Ela é polissêmica.”

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