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Entenda o filme que debate racismo ao monitorar a reação dos espectadores

Com inteligência artificial, britânica Karen Palmer põe o público na pele de manifestante do Black Lives Matter

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São Paulo

Você está andando na rua e, de repente, se vê no tumulto de uma manifestação antirracista. Um policial pega nos seus ombros no meio da correria e berra, a plenos pulmões e poucos centímetros do seu rosto —“você não devia estar aqui, saia imediatamente”. Como você reage?

A resposta a isso define como continua o filme “Riot”, em que o espectador está na pele deste personagem em primeira pessoa. Se você fica bravo, apanha e desmaia. Fim. Se fica nervoso, o policial se
sente provocado e algema você. Fim. Se consegue manter a calma, pode seguir em frente, e a história continua.

A próxima pergunta é —como diabos o filme vai saber qual foi a minha reação?

Acontece que “Riot” foi feito pela cineasta britânica Karen Palmer de forma experimental, num projeto que ela define como o futuro da maneira de contar histórias. Não é só que você assiste ao filme. “Meu filme assiste a você de volta”, afirma a diretora.

Mistura de cinema, game e instalação, a obra usa um mecanismo de reconhecimento facial para captar as emoções do espectador e, por meio de inteligência artificial, adapta a narrativa de acordo com elas.

Palmer criou “Riot” há cerca de três anos, inspirada nos protestos do Black Lives Matter que tomaram Ferguson, nos Estados Unidos, depois da morte de um jovem negro por um policial, em 2014. Era um exercício para que as pessoas brancas pudessem estar, pela primeira vez, num lugar que jamais ocupariam.

“Havia naqueles protestos uma visão de que o negro estava lá para saquear e o branco, só para se manifestar. Eu queria usar a tecnologia para mostrar o mundo da nossa perspectiva”, diz Palmer, que é negra. “E queria que as pessoas percebessem seus comportamentos mais inconscientes.”

A força da experiência de “Riot”, afirma a cineasta, vem do fato de suas emoções afetarem a narrativa do filme da mesma maneira como afetariam a narrativa da sua vida.

Quando o repórter comenta que a meta, então, seria reforçar a empatia entre as pessoas, Palmer diz que essa é uma impressão errada que muitos têm sobre o projeto. “É só na arte que as pessoas falam sobre empatia. No mundo, elas falam sobre medo. O objetivo é fazer com que as pessoas dominem os seus medos.”

O mundo é comandado por essa emoção, segundo a artista, já que o fato de todos temerem uns aos outros é usado como arma pelo governo. “Riot” busca capacitar cada espectador a perceber aquilo que o atemoriza e conseguir controlar suas pulsões.

“Se nós entendermos melhor o outro, vamos perceber que nós não somos o inimigo aqui. Talvez possamos nos encontrar no meio do caminho”, afirma Palmer. “Então poderemos olhar para o que realmente nos divide.”

Quem mora no Brasil, por ora, não tem como assistir aos projetos de Palmer, que requerem dispositivos específicos e a presença numa determinada instalação.

Sorridente da casa nos pais na Jamaica, onde passou os últimos meses fugindo da segunda onda do coronavírus no Reino Unido, ela diz que está preparando um protótipo que permitirá que as pessoas se conectem à experiência não importa onde estejam.

Mas antes disso, na semana que vem, os brasileiros poderão ouvir sua palestra na Feira Preta, maior evento de cultura e empreendedorismo negro do país, que tem o apoio do British Council. As questões que a britânica aborda têm óbvia relação com o país, como fica ainda mais evidente no seu experimento
seguinte, “Perception iO”.

No filme, feito nos mesmos moldes de “Riot”, o espectador encarna o ponto de vista de um policial e é confrontado com uma situação hostil protagonizada por uma pessoa negra e uma branca.

A forma como cada um reage a cada cena gera os desdobramentos, trágicos ou não, da história. “Será que o seu viés implícito vai trair você?”, desafia a instalação da artista.

Provocações artísticas como essas mostram como a inteligência artificial é capaz de fazer leituras emocionais, monitorar reações e controlar narrativas —e, potencialmente, muito mais do que isso.

Os algoritmos das mídias sociais, lembra a cineasta, são programados para influenciar comportamentos e percepções da realidade. “E elas são desenhadas por pessoas que não se parecem comigo.”

Quem desenvolve essas tecnologias também imbrica em cada uma delas os seus próprios vieses inconscientes.

“Muito se fala em substituir a polícia. Mas você vai substituir por robôs e câmeras controlados por algoritmos?”, questiona a pesquisadora. “Eu consigo argumentar com um policial racista. Mas não
consigo argumentar com um algoritmo racista.​”

A proposta de Palmer é usar esses mesmos algoritmos para subverter esse padrão dominante —o melhor jeito de não ficar submisso ao big tech, afirma, é “criar as nossas próprias plataformas”.

Do ponto de vista artístico, é de se pensar se experimentos como esses têm potencial de moldar, de alguma maneira, também o futuro do cinema.

Os projetos de Palmer estimulam que os espectadores dominem as próprias emoções para influir na narrativa e evitar que ela tenha um final nefasto —algo que se opõe à contemplação mais passiva da experiência cinematográfica como a conhecemos.

Vale perguntar se, caso um dia isso chegue a se tornar mainstream, estaria decretada a morte da experiência coletiva do cinema, em prol de uma ultraindividualizada. Palmer devolve isso com
outra pergunta. “Mas onde é que existe uma experiência coletiva no mundo de hoje?”

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