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Trump inaugurou época sem sutileza nas artes, forçando a cultura a gritar como nunca

Estilo sem filtro do presidente dos EUA fez produtos culturais ganharem conotação política e saírem do muro

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São Paulo

Quando Donald Trump, enfim, deixar a Casa Branca, o legado do mais polêmico dos presidentes americanos ainda vai reverberar além dos círculos engravatados de Washington ou da cobertura dourada na torre de Manhattan que leva seu nome.

Não é exagero dizer que, durante os anos Trump, a cultura pop ficou mais militante e engajada —ou melhor, foi obrigada a sair de cima do muro, perdendo qualquer sutileza. Obras que retratam a experiência de ser mulher, negro, imigrante ou LGBT nos Estados Unidos, seja em tom de denúncia ou de afirmação de identidade, ganharam conotação política nos últimos anos.

Donald Trump
Donald Trump - Saul Loeb/AFP

“Movimentos sociais vêm pressionando por mudanças no plano da cultura e na política pelo menos desde os anos 1980, levando as pautas dos anos 1960 a contextos mais amplos”, diz Giselle Beiguelman, artista plástica e professora da Universidade de São Paulo. “O que se consolida é a politização da cultura, âmbito em que as disputas narrativas contra o colonialismo são o eixo mais importante.”

Trump foi eleito em 2016 com um discurso de desprezo não só às artes, mas à preservação do meio ambiente e, mais ainda, às chamadas minorias. Suas falas provocativas, recheadas de impropérios que, anos antes, seriam considerados absurdos, funcionaram como combustível para movimentações que já aconteciam ao longo da última década.

Um ano antes da eleição de Trump, ativistas já cantavam a música “Alright”, então recém-lançada pelo rapper Kendrick Lamar, em manifestações contra a violência policial, que naquele ano havia tirado a vida de várias pessoas negras. No começo de 2016, a performance de Beyoncé no Super Bowl, seguida pelo disco “Lemonade”, provocou um boicote da polícia americana à cantora.

Depois dos quatro anos de Trump, o Black Lives Matter não só ficou conhecido mundo afora —tendo feito algumas das maiores manifestações do país—, como também inspirou canções de protesto e pode ter sido decisivo para esta última eleição no país.

“As mortes de negros americanos pelas mãos da polícia, frequentemente documentadas em câmeras de celular, começaram a viralizar no começo da década de 2010”, diz Jason Farago, crítico de arte do jornal The New York Times. “Então, isso começou sob Obama, mas, no governo Trump, o racismo da sociedade americana ficou mais difícil de negar.”

O disco “To Pimp a Butterfly”, que traz a música “Alright”, foi tratado como um manifesto de urgência, quase monopolizando as atenções da crítica. No Grammy do ano seguinte, no entanto, o álbum
foi preterido pela aventura pessoal de Taylor Swift em “1989”, eleito o disco do ano.

De lá para cá, gigantes do hip-hop —incluindo Kendrick Lamar— acusaram racismo e boicotaram a premiação, que hoje tenta ficar mais diversa para não cair na obsolescência. Sem entrar nos méritos estéticos, o álbum de Taylor Swift era visto como uma forma mais alienada de arte, num processo parecido com o que tomou diversas outras instituições culturais.

Segundo Farago, o trumpismo provocou uma contrarrevolução nos institutos de arte. O MeToo, que denunciou abusos e desigualdades de gênero na televisão e no cinema, ganhou corpo na era Trump. “Não sei se a arte se transformou tão profundamente, mas museus, escolas, galerias, revistas se tornaram mais ativos em relação à política. Trump matou a possibilidade de neutralidade nesses lugares.”

Desde a posse de Trump, milhões de pessoas aderiram às marchas das mulheres, contrárias ao presidente. “Essas mudanças estão em curso e não têm volta”, diz Beiguelman. “O contexto conservador não causou uma reviravolta fazendo com que as instituições procurassem soluções compensatórias. Pelo contrário, acirrou as disputas narrativas que já redesenharam o mapa das políticas culturais, forçando as instituições a repensarem seus projetos e seus acervos.”

Quando Trump instaurou um veto aos muçulmanos no país, os principais museus, liderados pelo MoMA, reorganizaram suas coleções permanentes para mostrar só obras de artistas imigrantes. O festival Pacific Standard Time, dedicado à arte latina, tomou diversos museus de Los Angeles, também como uma resposta ao presidente. O Decolonize This Place hoje organiza protestos em museus, criticando suas “tendências colonialistas”.

As grandes premiações viraram palco de protestos contra as desigualdades —o que já provoca mudanças. Para aumentar a diversidade, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, que organiza o Oscar, criou novas regras —os filmes precisarão cumprir pelo menos duas de quatro diretrizes que visam dar visibilidade a não brancos, mulheres, LGBTs, latinos e pessoas com deficiência.

Segundo Farago, o crítico do Times, a atitude dos trabalhadores da arte de “bons moços” passou a ser questionada. “Quando uma audiência mais jovem, munida de redes sociais e não controlada por instituições de elite, começa a acusar a ‘supremacia branca’, eles ficam em choque. É como se quisessem se limpar o mais rápido possível —com gestos simbólicos como as ‘regras de diversidade’ do Oscar ou iniciativas idiotas como postar uma imagem de Black Lives Matter. Vai levar anos para que os institutos de arte mudem.”

O escritor Ricardo Lísias, autor de “Diário da Catástrofe Brasileira”, vê parte dessas instituições como falidas, o que gera uma busca por espaço pelos artistas contemporâneos. “Hoje você tem uma arte que é exterior a essas instituições, com um artista como Banksy, por exemplo. Até a nova literatura está alinhada com essas novas formas de difusão.”

Mais do que uma guerra estética ou de poder, o trumpismo parece ter aprofundado a disputa de narrativas e identidades já em vigor. Foi no governo Trump que a música latina, o reggaeton, e a sul-coreana, o k-pop, cresceram nos Estados Unidos. Foi também quando um filme estrangeiro, “Parasita”, ganhou o prêmio mais importante do Oscar.

Segundo Beiguelman, Trump e, em sua esteira, Jair Bolsonaro, representam uma política em que “o estereótipo do homem branco, machão, destemido, que fala o que pensa, quando quer, é central”.

Ser politicamente incorreto, ela afirma, faz jus a essa cartilha. “Eles não falam com seu eleitor. Eles o expressam. E ao exprimir o eleitor, como escreveu Roland Barthes, comentando a fotogenia eleitoral em seu livro ‘Mitologias’, o transforma num herói, convidando esse eleitor a se eleger a si próprio.”

Analistas políticos apontam o Black Lives Matter como decisivo para a provável derrota de
Trump na Geórgia, estado do sul, historicamente republicano. Não à toa, o presidente recebeu menos votos em Atlanta, capital do estado que é também a capital do trap —subgênero que alavancou o rap ao status de música mais ouvida do país—, além de inspiração para uma das obras mais marcantes dos Estados Unidos atuais, “This is America”, de Childish Gambino.

“Trump definitivamente provocou uma contrarrevolução nas artes”, diz Farago. “Mas isso é também uma função da dissolução de limites provocada pelas redes sociais —e também pela Covid-19, que torna as redes o único espaço possível. O que vem depois não passa de especulação.”

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