Museus em crise vendem suas obras-primas para evitar fechar de vez as portas

Pandemia traz penúria a instituições pelo mundo e, no Brasil, MAM do Rio sobrevive devido à venda de um Pollock

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São Paulo

Um dos motivos de visitar um museu no exterior é poder ver obras que talvez nunca cheguem ao país, como uma escultura de Michelangelo feita há mais de 500 anos na Royal Academy of Art de Londres ou a última pintura de Andy Warhol no Museu de Arte de Baltimore, nos Estados Unidos, uma imensa tela em que o artista pop retratou o episódio bíblico da última ceia pouco antes de morrer.

Mas esses trabalhos —evidências de grandes artistas no auge do seu ofício— estão ameaçados de deixar as paredes das galerias e passar a decorar mansões de milionários, ou ornar os interiores de seus iates, onde nunca mais serão vistos pelo público. Diante da penúria financeira causada pela pandemia de coronavírus, museus dos Estados Unidos e do Reino Unido começaram a leiloar ou anunciaram a intenção de vender obras importantes de suas coleções para fazer caixa.

Fechados por meses devido às medidas para conter o coronavírus, museus de vários países ficaram privados de suas fontes de renda. Sem visitas, não há dinheiro de ingressos nem venda de produtos nas lojinhas. Jantares de arrecadação de fundos foram cancelados e o derretimento dos mercados fez com que as aplicações financeiras das instituições rendessem menos. Então se torna cada vez mais tentador encontrar uma saída para a crise em acervos que valem centenas de milhões.

“A Última Ceia”, de Warhol, parte da coleção do museu de Baltimore, tem valor estimado em no mínimo US$ 40 milhões, ou R$ 230 milhões. A escultura “Taddei Tondo”, de Michelangelo, pode salvar 150 empregos e ajudar a pagar por uma reforma da Royal Academy, caso seja vendida —ela vale cerca de £ 100 milhões, ou R$ 743 milhões, segundo o jornal The Art Newspaper.

Vender determinados trabalhos é um expediente usado às vezes. “Em geral, o que ocorre é a venda de obras consideradas redundantes ou de menos importância na coleção para se comprar outras, que são consideradas lacunas ou prioritárias no acervo”, afirma Adriano Pedrosa, diretor-artístico do Masp, acrescentando que isso ocorre com frequência nos Estados Unidos.

Mas, até a pandemia, a Associação dos Diretores de Museu de Arte dos Estados Unidos vetava que o dinheiro dessas vendas —conhecidas como "desaquisições"— fosse usado para financiar custos operacionais, como o pagamento de salários e a manutenção do acervo. Esta possibilidade só se tornou viável depois que o órgão reconheceu a “crise sem precedentes” deste ano e afrouxou as regras.

Diretora do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, o MAC, Ana Gonçalves Magalhães afirma ver com preocupação esse movimento. “Museus venderem obras, que são a razão de sua existência, para apoiar suas atividades-fim é de uma enorme perversidade e cria uma situação em que a infraestrutura e os recursos humanos que são responsáveis pela preservação das coleções museológicas, e os objetos de um acervo, se tornam coisas excludentes.”

Magalhães, que acaba de ver leiloadas obras importantes do ex-banqueiro Edemar Cid Ferreira que estavam sob a guarda do MAC, lembra o código de ética do Conselho Internacional dos Museus, o Icom, segundo o qual a função de um museu é conservar a cultura material da humanidade, ajudando na construção da memória coletiva. "É importante lembrar que a salvaguarda de objetos, artefatos, obras de arte e documentos embasou e embasa ainda o conhecimento científico, em várias áreas, inclusive no campo da arte."

No caso de Baltimore, o biógrafo de Andy Warhol, Blake Gopnik, afirmou em seu blog que para o museu “se livrar de grandes obras de grandes artistas é como a biblioteca local expurgar livros de Shakespeare, Darwin e Tolstoi, e esperar que os leitores se saiam bem sem o conhecimento que eles contêm”. Segundo ele, quem comprasse a tela seria envergonhado publicamente e deixaria de ser bem-vindo no mundo da arte.

A obra de Warhol e as pinturas “1957-G”, do expressionista abstrato Clyfford Still, e “3”, do minimalista Brice Marden, deveriam ter encarado o martelo na semana passada e gerado em torno de US$ 65 milhões, ou R$ 374 milhões, mas o leilão na Sotheby’s foi cancelado em cima da hora.

Houve uma tremenda pressão da comunidade artística fora e dentro do museu —23 diretores e mantenedores enviaram uma carta ao procurador-geral do estado de Maryland pedindo uma investigação sobre a "retirada apressada e opaca de três obras icônicas" da coleção.

Um exemplo controverso recente do paradeiro de uma grande obra de arte se deu com uma tela atribuída a Leonardo Da Vinci, "Salvator Mundi", vendida num leilão da Christie's, em 2017, para um suposto intermediário do príncipe herdeiro saudita Mohammed bin Salman. Ele teria pendurado o quadro, um ícone da arte renascentista italiana, dentro do iate que comprou de um magnata russo da vodca. A tela seria exibida no Louvre, numa mostra do pintor italiano no ano passado, o que não aconteceu.

A liquidação de obras que varre agora o mercado é um sintoma da falta de investimentos em museus nos últimos anos. Magalhães chama isso de "ataque a valores humanitários", e menciona uma carta de junho publicada pelo Icom, em que o órgão afirma que a situação dessas instituições, “severamente subfinanciadas” antes da pandemia, agora tende a piorar. O documento estima que um terço dos museus americanos não vão mais abrir as portas depois da pandemia.

Por outro lado, um exemplo brasileiro inédito parece mostrar que o leilão de um quadro pode resgatar um museu. “Se a gente não tivesse vendido o Pollock, o MAM possivelmente estaria fechado”, diz Fabio Szwarcwald, diretor-executivo do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. A instituição carioca vendeu, em 2018, por cerca de R$ 47,6 milhões, a tela “Número 16”, a única obra do expressionista abstrato numa coleção latino-americana.

A atitude do museu foi bastante criticada à época. O quadro encalhou num primeiro pregão e foi vendido no segundo por cerca de 50% do valor esperado pelo museu. Mas o dinheiro está agora viabilizando que a instituição se torne “um museu mais importante na cultura do Rio e do Brasil”, afirma Szwarcwald.

Nos cinco meses em que ficou fechado devido à pandemia, o museu perdeu cerca de R$ 1,3 milhão em arrecadação com a locação de espaços e estacionamento, segundo o diretor, fora o valor dos ingressos. Mas, ao reabrir, em setembro, o MAM do Rio instaurou a chamada contribuição sugerida, pela qual o visitante paga o quanto quiser para entrar —o indicado é R$ 20, mas é possível fazer a visita de graça. A ideia, segundo Szwarcwald, é possibilitar o acesso para quem não pode pagar.

Com essa e outras medidas, Szwarcwald afirma que pretende aumentar o público do museu, atualmente em 40 mil pessoas ao ano, para pelo menos 150 mil em 2021.

O montante do dinheiro do Pollock que não está sendo usado na reestruturação do museu —entre 50% e 60%— deve ser aplicado num “endowment”, um tipo de investimento usado para custear museus nos Estados Unidos e também o Instituto Moreira Salles, aqui no Brasil. Segundo o diretor, o rendimento desse fundo deve bancar parte da operação do MAM no futuro, e a outra parte será financiada por captação junto à iniciativa privada –o edifício no Aterro do Flamengo precisa de R$ 12 milhões por ano para abrir as portas, fora o valor gasto com as exposições.

Diante do cenário de incertezas trazido pela pandemia, há uma grande possibilidade de que as empresas invistam menos em cultura no ano que vem, e museus como o carioca, que não recebem dinheiro do governo, podem sofrer. Nesse caso, mais um pouco da verba da venda do Pollock será gasta. “Se eu tiver que usar, não tem jeito. Eu prefiro ter um museu pujante e aberto do que o dinheiro travado [no banco], engessado", afirma o diretor.

Museus vendem tudo

  • O Everson Museum, de Siracusa, no Estado de Nova York, vendeu a tela “Red Composition” (1946), de Jackson Pollock, por US$ 12 milhões, ou R$ 69 milhões
  • O Brooklyn Museum vendeu no início do mês uma tela do século 16 de Lucas Cranach, o Velho, por US$ 4,2 milhões, ou R$ 24,2 milhões; na semana passada, liquidou outras telas e uma mesa de Carlo Mollino e arrecadou mais US$ 19,8 milhões, ou R$ 114,4
  • A Royal Opera House, uma casa de óperas de Londres, vendeu a tela “Portrait of Sir David Webster (1971)”, de David Hockney, por 12,8 milhões de libras, cerca de R$ 95,6 milhões
  • A Royal Academy of Art, de Londres, cogita se desfazer de uma escultura de Michelangelo estimada em 100 milhões de libras, ou R$ 743 milhões
  • O Museu de Arte de Baltimore esperava obter US$ 65 milhões, ou R$ 374 milhões, com o leilão de uma tela de Andy Warhol, outra de Clyfford Still e uma terceira de Brice Marden, mas o pregão foi cancelado
  • Em 2018, portanto antes da pandemia, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro vendeu uma tela de Jackson Pollock por R$ 47,6 milhões
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