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Ta-Nehisi Coates mostra que a história do escravo não é a da escravidão

Primeiro romance do escritor premiado é movido pelo poder da memória, legado imaterial que sustenta as personagens

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Fernanda Silva e Sousa

Crítica literária e doutora em letras pela Universidade de São Paulo

A Dança da Água

  • Preço R$ 59,90 (400 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Ta-Nehisi Coates
  • Editora Intrínseca
  • Tradução José Rubens Siqueira

“Meu papel foi contar a história do escravo. Para a história do senhor não faltam narradores.” É essa frase do abolicionista negro Frederick Douglass que aparece como epígrafe do romance de Ta-Nehisi Coates, "A Dança da Água".

Premiado pela obra "Entre o Mundo e Eu", um misto de memória, crítica social e autobiografia, Coates nos leva a ver, em seu primeiro livro de ficção, que a história do escravo não é a história da escravidão, uma tradição iniciada por Toni Morrison no romance "Amada", de 1987.

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O escritor Ta-Nehisi Coates, que lança "A Dança da Água" (Intrínseca) - Gabriella Demczuk - 16.jul.2015/The New York Times

No livro, chama atenção a mobilização de outro vocabulário para se referir a elementos constitutivos da escravidão, sugerindo novos sentidos.

O trabalho escravo parece uma entidade ontológica inescapável, chamado de “tarefa”; os escravizados, de “tarefeiros”, sublinhando o trabalho contínuo de homens e mulheres e não a submissão; e os fazendeiros e elites brancas, de “qualidade”, uma forma irônica de se referir à crença na superioridade branca, cujos poderes “eram todos uma ficção”.

Ambientado na cidade de Lockless, no sul dos Estados Unidos antes da Guerra Civil, o romance é narrado e protagonizado por um tarefeiro, Hiram, filho do dono da fazenda onde trabalha, que é separado da mãe aos nove anos de idade.

Hiram, porém, tem o incrível “dom da memória”, capaz de guardar dentro de si “imagens, correntes de cores, linhas, texturas e formatos” de tudo que ouvia, menos da sua mãe, que “era apenas neblina e fumaça”, mas cujas lembranças ele tenta recuperar ao longo da trama.

É esse “incrível poder da memória” de Hiram que move o romance, marcado pela jornada do narrador em busca não apenas de sua liberdade, mas também a liberdade de outros tarefeiros a partir do uso do seu dom e da sua aliança com abolicionistas negros e brancos que formam a Clandestinidade, onde lutam numa “guerra secreta, encoberta, mística, violenta”, cujo objetivo “não é apenas melhorar o mundo, mas refazê-lo”.

Se a obra não pode refazer o mundo, é nela que vislumbramos um outro mundo —o mundo tornado possível pelos escravizados, “uma vida além da tarefa”.

A fala de uma das personagens ilustra isso. “A gente aqui tem um mundo nosso, um jeito nosso de ser, de conversar, de rir”, e, nesse mundo, a genialidade se encontra nas mãos dos tarefeiros que trabalham, nas vozes dos que cantam, “em todas as nossas perdas”, em tudo que se é capaz de lembrar e de transmitir adiante.

Nesse sentido, é um legado imaterial que sustenta a existência das personagens. O dom de Hiram, capaz de desafiar obstáculos a partir da evocação de lembranças, se torna emblema de uma luta por liberdade ancorada na capacidade de ser conduzido pelas memórias daqueles que já se foram, ou seja, pela ancestralidade.

Como ensina Harriet Tubman, uma lendária abolicionista negra cuja aparição é fundamental para a jornada de Hiram, “esquecer é realmente ser escravo, esquecer é morrer”. Afinal, “a memória é o caminho, a memória é a ponte que liga a maldição da escravidão à bênção da liberdade”.

Se para ser livre é preciso lembrar, o romance de Coates, ao também incorporar canções escravas e a dança da água que a mãe do protagonista e outras escravas dançavam, mostra que para lembrar é preciso cantar e dançar.

A história do escravo não é, assim, a história da escravidão, mas as histórias dançadas, cantadas, rezadas de “todo um mundo nosso escondido deles”, parte de um segredo e de um poder que, "assim como a nossa música, como a nossa dança, eles não conseguem entender porque não conseguem lembrar”.

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