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Tsitsi Dangarembga lutou para escrever livros, foi presa e chegou à final do Booker

Autora de cânone literário africano criou 'This Mournable Body' após pausa na escrita

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Wadzanai Mhute
The New York Times

Quando “Condições Nervosas", o romance de estreia de Tsitsi Dangarembga, foi publicado, em 1988, o livro foi saudado como uma das obras mais importantes da literatura africana no século 20. O romance conta a história de Tambudzai, uma menina que cresceu na pobreza na então Rodésia, agora Zimbábue, e de sua luta para obter uma educação e enfrentar os desafios da desigualdade de gênero enraizada, na África das décadas de 1960 e 1970 e no mundo pós-colonial. A editora queria uma continuação o mais rápido possível.

Mas em lugar de mergulhar na escrita, Dangarembga decidiu estudar cinema. “Não pensei em escrever prosa por diversos anos”, disse ela em entrevista. “Não tinha espaço para a escrita em minha cabeça.” Foi só em 2006 que uma continuação, “The Book of Not”, foi lançado, contando a vida de Tambudzai, ou Tambu, no colégio interno em que foi estudar, mas cada vez vez mais desiludida com sua vida. O livro não saiu nos Estados Unidos.

A terceira obra com a mesma protagonista, “This Mournable Body”, foi publicado com mais alarde nos Estados Unidos pela editora Graywolf Press em 2018 e no Reino Unido neste ano pela Faber & Faber. O romance foi indicado para o Booker Prize deste ano.

Em “This Mournable Body”, Tambu se tornou a mulher educada que tanto batalhou por ser, ainda que isso não tenha parecido trazer a ela grande conforto —material, social ou emocionalmente. Solitária, muitas vezes desempregada, e lutando para reter seu senso de valor pessoal, ela reflete de algumas maneiras as frustrações de zimbabuenses, como Dangarembga com a situação de seu país, que está em queda livre econômica e sofre com violações dos direitos humanos e com a pandemia do coronavírus.

Dangarembga não hesita em se pronunciar sobre política e gerou manchetes no mundo inteiro algumas semanas atrás ao ser detida durante um protesto em Harare, dias depois de ver anunciada sua inclusão entre os pré-selecionados para o Booker Prize. Mais tarde, “This Mournable Body” foi incluído entre os candidatos ao prêmio, anunciado em 19 de novembro.

Ela discutiu os anos transcorridos entre seus romances e o que entende como os problemas e possibilidades do Zimbábue, para onde retornou depois de passagens pela Inglaterra e pela Alemanha.

*

O que você fez no intervalo entre 'Condições Nervosas' e seu livro mais recente? O que aconteceu nos anos intervenientes? Escrevi “Condições Nervosas” enquanto estudava na Universidade do Zimbábue. Não consegui publicar o livro em meu país, porque na época só autores homens eram publicados, e eu não tinha acesso a editoras. Ouvi dizer que a Women’s Press da Inglaterra tinha publicado Alice Walker e, por isso, encaminhei a eles minha única cópia do manuscrito, pelo correio.

A editora não respondeu. Anos mais tarde, quando fui à Inglaterra a trabalho, visitei o escritório da editora em Londres. Meu manuscrito estava guardado no porão, e ninguém o tinha lido. Porque eu estava lá, concordaram em ler e no dia seguinte me disseram que queriam publicar. É por causa disso que houve o intervalo de quatro anos entre a escrita e a publicação.

Antes da publicação, eu não imaginei que conseguiria fazer carreira como escritora e, por isso, comecei a trabalhar numa pequena produtora de documentários. De lá, decidi estudar cinema, na Alemanha. Porque eu precisava aprender o idioma, passei anos sem pensar em prosa. Depois do sucesso de “Condições Nervosas”, minha editora me pediu que escrevesse uma continuação, mas eu estava na Alemanha e não achava possível escrever sobre o Zimbábue.

Era a segunda metade dos anos de 1990 e eu tinha uma família para criar e estava vivendo com renda de estudante. Não havia espaço para a escrita em minha cabeça. Também não havia alguém com quem eu pudesse conversar sobre o Zimbábue. Pouca gente na Alemanha tinha ouvido falar de lá. Para eles, era só um país na África.

Comecei a voltar ao Zimbábue para projetos de filmes e, por isso, retomei o contato com o país. Em 2000, voltei definitivamente e recomecei a escrever. As crianças já estavam na escola e, com ajuda, eu tinha espaço para escrever.

“The Book of Not” foi publicado em 2006. Eu não estava mais recebendo royalties de meu primeiro editor, o que me salvou foi uma bolsa de pesquisa do Bellagio Center, da Fundação Rockefeller, em 2016. O meu marido ficou tomando conta das crianças no Zimbábue e eu pude passar quatro semanas num lugar onde me senti intelectualmente estimulada, conversando sobre escrita com outros escritores.

Quando terminei de escrever “This Mournable Body”, publiquei partes dele nas redes sociais. E a editora Ellah Wakatama Allfrey me ajudou a conseguir um agente. Sou muito grata a ela, porque não existem oportunidades para pessoas como eu.

Quando você começou a escrever 'Condições Nervosas', imaginou que seria o início de uma trilogia? Sua intenção era retomar a história? Eu queria apresentar esperança em “Condições Nervosas”, mas sempre vi o livro como fim de um período, e não o fim da história daquela personagem. Tambu vai estudar em uma escola interracial que não era muito interracial. Eu queria tratar disso. Mas eu estava escrevendo na década de 1980, pouco depois da independência, e não podia escrever o que desejava porque o momento não era apropriado. O Zimbábue tinha se tornado independente, mas não tinha ainda lidado com as questões que resultaram na independência. E em seguida, na década de 1990, explodiram as questões de terra, e eu voltei da Alemanha. Senti que era hora de escrever a respeito disso.

Alguns leitores apontam semelhanças biográficas entre Tambu e você. Até que ponto isso foi intencional? Entendo que as pessoas vejam a situação desse jeito. Quando comecei a escrever, eu tinha acabado de me tornar feminista. Via como a interseção entre raça, gênero e classe afetava as pessoas. Queria que as pessoas se sentissem próximas de Tambudzai, que tinha enfrentado muitas coisas semelhantes.

A Tambu de 'Condições Nervosas' para mim é muito diferente da Tambu de 'This Mournable Body'. Ela passa por desilusões, a despeito de sua educação, e continua impossibilitada de ganhar a vida. Ela reflete o status atual das pessoas com bom nível educacional no Zimbábue? Ela era uma mulher com bom nível de educação que estava chegando à meia idade na década de 1990, com um diploma, e não conseguia se
sustentar. Agora, se tornou mais comum ter um diploma e não conseguir emprego. Então, eu percebi que a situação atual do Zimbábue já estava começando a se manifestar.

O que você espera que os leitores, especialmente os de fora do Zimbábue, aprendam com seus livros? Como escritora, não gosto de prescrever significados para os leitores. Quero que eles acompanhem a trajetória de Tambudzai.

Em “This Mournable Body”, ela se tornou uma mulher dura e amargurada. Ela tenta se tornar parte de grupos que a excluem. Também há a perda de orgulho e dignidade de sua família. Tambu por fim chega à conclusão de que nem tudo gira em torno dela e de que ela precisa incluir outras pessoas em sua vida.

Você sempre se pronunciou claramente sobre a política do Zimbábue, mas isso não é tão aparente em seus livros. Isso aconteceu por escolha? E você considerou a hipótese de agir de modo diferente? É um reflexo de minha posição. Acredito que a política exista para servir às pessoas, mas no Zimbábue são as pessoas que existem para servir à política. Gosto de retratar esse ponto de vista, sobre a pessoa individual e como ela se envolve com outras pessoas e com seu ambiente. O sucesso ou fracasso das pessoas é o sucesso ou fracasso da nação. Escrevo sobre seres humanos como tema, e a política é vista pela lente da pessoa.

Se o Estado está funcionando bem, as pessoas florescerão, mas se o sistema não está bem, as pessoas não vão florescer.

Mulher negra de dreads segura placa
Tsitsi Dangarembga protestando no Zimbábue em 31 de julho de 20 - Zinyange Auntony/AFP

Como você descreveria um Zimbábue melhor? Quando trabalhei para Arthur Mutambara, antigo primeiro-ministro assistente do Zimbábue, ele me perguntou qual era minha visão para uma família do Zimbábue. Não respondi na hora, mas mais tarde pensei. Qual é a unidade familiar básica da sociedade? Como desejamos que essas unidades se relacionem? Eu gostaria que as famílias tivessem água limpa,
abrigo, educação, serviços de saúde, entretenimento significativo, recreação, crescimento espiritual, mas sem que isso seja imposto aos outros. Que pudessem viver a vida da maneira que escolherem.

Em 'This Mournable Body', você usa uma narração em segunda pessoa. Poderia explicar essa escolha? Comecei escrevendo diversos rascunhos em primeira pessoa, e tive problemas para lidar com as dificuldades da personagem. Era perturbador demais me comunicar daquela maneira. Eu sentia que precisava deixar coisas de fora, e assim não estava fazendo justiça ao que desejava dizer. Tinha que encontrar uma maneira de resolver esse desafio. Uma narrativa em terceira pessoa pareceria remota demais, considerando que os livros anteriores foram narrados em primeira pessoa. Experimentei narrar em segunda pessoa, e funcionou.

Quais são seus planos para o futuro? Quero estabelecer iniciativas de treinamento de mulheres para o
cinema, iniciativas de construção de capacidades, para poder fazer filmes. Tenho alguns em pré-produção, e alguns prontos para exibir. Eu viveria em um ambiente com eletricidade confiável.

Agora, enfim, tenho energia solar —que não acaba quando estou no meio de uma frase. Ter água encanada, viver em algum lugar onde haja uma comunidade de arte e literatura vibrante e onde eu possa ter discussões significativas.

Se você reparar, os zimbabuenses que escrevem com sucesso não vivem no Zimbábue. É ótimo que escrevam sobre suas experiências lá, mas precisamos de escritores em nível local, escrevendo sobre questões locais. Idealmente, poderíamos ter um governo que apoiasse as artes como uma janela para sociedade e para criar um espaço de discussão.

Tradução de Paulo Migliacci.

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