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Claudia Raia dá o mesmo peso a status de celebridade e vida de artista em biografia

Trajetória da atriz no teatro musical no Brasil é narrada em 'Sempre Raia um Novo Dia'

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Mulher branca, jovem e magra é levantada por homem em palco

Cláudia Raia no espetáculo 'Não Fuja da Raia' Arquivo pessoal

São Paulo

O primeiro musical de Claudia Raia foi “Sexcitante”, uma revista estrelada pela vedete argentina Susana Giménez em 1981, no Teatro El Nacional, de Buenos Aires.

É uma das muitas histórias que ela conta no livro de memórias “Sempre Raia um Novo Dia”, escrito com a jornalista Rosana Hermann.

Tinha 15 anos e um princípio de carreira no balé. O país estava sob ditadura e em guerra, pelas Malvinas, e o ambiente era opressivo para artistas. A revista tinha sátira política, falava da guerra.

Num sábado, terminada a terceira sessão daquele dia, começando a madrugada, ela e mais de uma dezena de dançarinos, “todos gays”, foram jantar no café em frente.

“Um carro preto parou, meus amigos começaram a tremer, ‘averiguación de antecedente’”, diz ela, em entrevista por telefone. Pelo que recorda, os carros pretos de policiais saíam pela noite “à caça de homossexuais”.

Ela estava morando no apartamento de Ruben Terranova, o primeiro bailarino de Giménez, que depois foi trabalhar como coreógrafo e professor em Campinas, no interior de São Paulo.

“O Ruben estava do meu lado e disse, ‘não fale uma palavra em espanhol, diga que é brasileira em férias’.” Foram todos presos. Ela já era “aquela mulher grandona”, perto do 1m78 de hoje, e só descobriram a sua idade na delegacia.

“Dentro do táxi, voltando, ouvi a notícia de que o El Nacional estava pegando fogo.” Acabou ali o musical e também aquele seu ano e pouco de carreira na Argentina, que incluiu ainda o balé “Romeu e Julieta”, no Teatro Colón.

A história é detalhada no livro, que dá tanta atenção à sua trajetória de palco —e aos artistas que a formaram— quanto à de celebridade.

Ela nasceu há 53 anos e começou a dançar aos 2 em Campinas, na academia da mãe, Odete Motta Raia. Antes de Buenos Aires, já havia morado em Nova York. Foi para lá aos 13, estimulada pelo bailarino e coreógrado Lennie Dale.

É outra das histórias que ela conta. Aos sete anos, depois de o ver dançando com os Dzi Croquettes na televisão, infernizou a mãe para que a levasse ao Teatro Brigadeiro, em São Paulo, onde eles se apresentavam.

Chegaram durante o ensaio, Dale só de sunga, dançando o mambo, um de seus solos, repetidamente. Ela o interrompeu da plateia, dizendo dançar como ele. Dale a chamou ao palco, ela o imitou.

Acabou se tornando amigo da mãe e dela e chegou a dar aulas em Campinas. Foi quem chamou a sua atenção para o American Ballet Theater, que a aceitou em Nova York —e a levou ao contato com a Broadway, para não escapar mais.

Viu sete vezes “A Chorus Line”, sobre dançarinos em audições para formar uma linha de coro. Seria o espetáculo em que estrearia no Brasil, no Teatro Sérgio Cardoso, em 1983 (leia trecho abaixo).

A partir dali, apesar da demanda da TV, que a descobriu em "Chorus Line", não saiu mais de cena. As memórias podem ser lidas como uma narrativa de suas influências no teatro musical, inclusive alguns nomes pouco conhecidos fora dos bastidores.

Lennie Dale, diz ela, "me trouxe o Dzi Croquettes e ao mesmo tempo o Bob Fosse", o coreógrafo de alguns dos principais espetáculos que Raia adaptaria para o Brasil, como "Sweet Charity" e "Cabaret".

Alonso Barros, bailarino que dividiu o palco com ela em "Chorus Line" e depois se tornou coreógrafo na Europa, voltou ao Brasil para fazer a recriação coreográfica em ambos os musicais. "Ele é o senhor Bob Fosse, o mais preparado em Fosse no mundo", diz Raia.

Aos poucos, ela se firmou como produtora e ganhou outros parceiros de palco, caso de Marcos Tumura, que a acompanhou a partir de "Splish Splash", de 1987, passando pelos espetáculos com trocadilhos sobre seu nome, como "Não Fuja da Raia".

"A gente fez tudo juntos", diz ela, sobre o bailarino e depois cantor, que morreu em 2017. "Era um dos maiores orgulhos da minha carreira, ter ajudado a formar aquele talento."

Foi Tumura quem a levou a Jarbas Homem de Mello, como um desafio, dizendo ser um bailarino e sapateador , como ela, combinação rara no teatro musical brasileiro. É com Mello, que se tornou seu marido, que ela divide o palco e as produções, hoje.

Outro é o diretor musical Marconi Araújo, mestre de voz de Tumura, Mello e, por fim, também dela. "É o cara da voz no teatro musical, que me tratou mesmo como uma pupila, a única contralto que ele tem, voz que ele ama", diz.

Ao mesmo tempo, foi quem a convenceu e mostrou como cantar com a voz que o papel pedir. "Ele sabe tudo da minha voz, a textura, as minhas possibilidades, dificuldades, os meus acertos." Até hoje, faz aulas com Araújo toda semana.

O livro não trata de musicais brasileiros, como aqueles de Chico Buarque. Questionada, respondeu com um misto de irritação e frustração.

"Mas a gente não tem, né. Temos o Chico Buarque e temos o Chico Buarque. Mais ninguém. Não tem novos autores e compositores. Os americanos estão 150 anos na nossa frente." De qualquer maneira, prometeu uma surpresa nessa frente, para 2022.

Como produtora, tarefa que assumiu a partir dos 19 anos, se mostra contrariada, diante do questionamento constante em torno da Lei Rouanet e dos artistas, no discurso político.

“Não tem segurança nenhuma”, diz ela, sobre a produção no Brasil. “Cheguei até aqui levando martelada na cabeça, tendo que vender carro, apartamento, até hoje é assim. Aqui, quem faz cultura é visto como bandido.”

Sua esperança está na estrutura profissional que ajudou a erguer, no palco e nas coxias, com “mais elenco, mais orquestra, mais técnicos”, permitindo hoje dez ou mais musicais ao mesmo tempo, em São Paulo. Muito diferente de quanto estreou na cidade, aos 16.

Sempre Raia um Novo Dia

  • Preço R$ 34,57 (256 págs.), R$ 26,91 (ebook)
  • Editora HarperCollins
  • Autoras : Claudia Raia e Rosana Hermann

Trecho das memórias:

Eu estava preparadíssima para a audição de "Chorus Line". Na minha cabeça, já estava contratada para fazer a Sheila Bryant, porque dançava superbem e tinha assistido sete vezes na Broadway. Só tinha que vencer a ansiedade e avisar minha mãe para sairmos bem cedo de Campinas e fazer minha inscrição. Minha mãe, com seu excesso de bom senso, reagiu fincando nossos pés na realidade:

— Mas, minha filha, você não tem idade pra fazer esse papel! Você tem 16 anos!

Em tese, ela tinha razão. A personagem era a mais velha das mulheres da linha de coro, uma quarentona que mente que tem trinta e dois, o dobro da idade que eu tinha na época.

— Mas o papel é meu, eu vou.

E no dia 4 de janeiro de 1983, às cinco da manhã, eu estava em frente à Escola de Bailados de São Paulo e era a primeira da fila. Fiquei o tempo todo firme esperando a abertura das inscrições, às oito. Os testes começariam às dez.

Audições desse tipo começam de manhã e costumam varar a noite, porque são muito técnicas e demoradas. Walter Clark, o produtor, abriria o teste e iria embora depois das primeiras horas. Como eu era a número “0001” de mais de mil candidatas, fui a primeira a entrar e a ser recebida por Walter.

— Prazer, eu sou a Maria Claudia Motta Raia e tem dois problemas: um é que eu sou menor de idade e o outro é que eu vou fazer a Sheila Bryant.

Walter começou a rir e respondeu:

— Que você seja menor de idade, tudo bem, isso a gente ajusta. Mas se você vai fazer a Sheila Bryant, aí eu não sei, porque estou trazendo o coreógrafo americano Roy Smith, e é ele quem vai escolher.

— Mas pode escrever aí que sou eu que vou fazer — insisti.

— Tomara que seja — disse Walter, inscrevendo meu nome na audição.

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