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Hugh Grant e o roteirista David E. Kelley discutem o final da série 'The Undoing'

Minissérie se destacou nesta pandemia, sendo algo com que as pessoas puderam se obcecar enquanto o mundo está parado

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Jennifer Vineyard
The New York Times

O episódio final de “The Undoing”, da HBO, exibido na noite de domingo (6), trouxe a conclusão do mistério modesto —quem matou Elena Alves?—, nos provocou inveja uma última vez com os fabulosos casacos de inverno de Nicole Kidman e repercutiu na internet (“Com base no que li no Twitter, deduzo que um sujeito elegante representado por Hugh Grant matou um bebê”, brincou uma pessoa no Twitter).

O próprio Hugh Grant estava pensando em evitar as redes sociais após o término da série, ele disse no dia seguinte à final. “Mas dei uma olhadinha rápida e cá estou, duas horas mais tarde, ainda lendo.” “Tem muita gente dizendo que estou parecendo velho. Essas pessoas não deixam de ter razão. Mas o fato de que gostaram da final é fantástico.”

Se “The Undoing” não chegou a atingir o grau de fascínio febril de “Quem atirou em J.R.?” ou “Quem matou Laura Palmer?”, a minissérie de seis episódios se destacou nesta era de pandemia, sendo alguma coisa com que as pessoas puderam se obcecar enquanto o mundo estava em modo pause. Espectadores socialmente distanciados com tempo para jogar fora se reuniram nas redes sociais para cobiçar as roupas deslumbrantes e tecer teorias cada vez mais implausíveis.

O Dr. Jonathan Fraser (Hugh Grant) era o suspeito principal, mas essa não seria uma resposta fácil demais? O que dizer do filho, Henry (Noah Jupe)? Ou do pai, Franklin (Donald Sutherland)? Nem mesmo o investigador da polícia (Edgar Ramírez) estava inteiramente acima de qualquer suspeita. Celebridades que viraram fãs de “The Undoing”, como Kerry Washington, Ava DuVernay, Kourtney Kardashian e Carole Radziwill, fizeram parte do júri nacional, enquanto Nicole Kidman e Edgar Ramírez incentivavam a circulação de hipóteses e palpites.

Mas, depois de um festival de pistas falsas, a virada final na história nos revelou a pessoa posicionada desde o início como o suspeito óbvio: sim, o assassino era Jonathan Fraser. Jonathan matou sua amante, Elena, em parte porque ela queria ser amiga de sua mulher, Grace (Kidman), e em parte porque era sociopata narcisista e se viu por acaso com um martelo de escultor à mão. Poderia realmente ter sido tão simples assim?

“Uma das coisas que queríamos era que os espectadores o enxergassem como Grace o enxergava”, diz o criador da série, David E. Kelley. “Nosso ponto de partida foi dar ao espectador a verdade sobre Jonathan e desafiá-lo a ir descartando a verdade ao longo do caminho.”

Para ele, o timing da série está em sintonia com o estado de ânimo nos Estados Unidos. “A agressividade das pessoas, a disposição delas de acreditar em uma narrativa quando os fatos nos estão dizendo o oposto?”, disse Kelley. “É uma coisa que estamos cansados de ver.”

Em entrevistas telefônicas separadas, Hugh Grant (falando da Inglaterra) e Kelley (da Califórnia) discutiram como moldaram a final da série, incluindo a cena crucial do assassinato visto em flashback. Seguem trechos editados das conversas.

*

Parte da série joga com a visão que temos de Hugh Grant há anos e dos papéis que talvez vejamos como sendo típicos de Hugh Grant. “The Undoing” usa esse charme do ator como arma contra o espectador.
Hugh Grant: Francamente, eu queria me distanciar daqueles personagens. Fico mais à vontade quando represento um personagem muito diferente de mim do que quando faço alguma versão de mim mesmo. Essa questão deu margem a bastante discussão, porque percebi que a diretora (Susanne Bier) queria que eu fizesse justamente aquilo e injetasse um pouco do velho Hugh em Jonathan. Acho que foi inteligente da parte dela. Ela pensou: “Vai ser tão legal. As pessoas vão pensar ‘não o cara de ‘Um lugar chamado Notting Hill’! Não o cara de ‘Simplesmente Amor’! Ele não seria capaz de dar 14 marteladas na cara de alguém.”

David E. Kelley: Colocamos esse homem maravilhoso e charmoso diante de vocês. A série apontou para ele como culpado, e é uma prova da habilidade de Hugh e da direção de Susanne Bier que o público se aferrou à ideia de “e se...?”. “Quem sabe ele não é inocente?”

Grant: Acho que Jonathan é um desses narcisistas que não acreditam que qualquer coisa de negativo possa lhe acontecer. Não pode ter acontecido, porque coisas ruins não acontecem com o grande Jonathan Fraser. Por exemplo, alguns podem dizer que Trump sabe, intelectualmente, que perdeu a eleição, mas quando ele afirma que ela foi manipulada, acredita piamente nisso. Foi por isso que representar esse personagem foi divertido para mim.

Pesquisei alguma coisa sobre as diferenças entre transtorno de personalidade narcisista, psicopatas e sociopatas. Não me recordo das diferenças agora. É uma coisa que pode te deixar meio confuso, e você tem que passar cinco episódios e meio tentando esconder a verdade. Você não pode fazer o personagem trair uma ansiedade passageira. Nas margens da minha cópia do roteiro, eu me referi a ele como dois personagens. Um deles chamei de J.B., ou John Boy, o nome que inventei para designar aquele homem mimado. E outro era I.J., Innocent Jonathan, a pessoa de faz-de-conta.

A máscara de Jonathan cai por terra quando sua mulher o acusa em seu depoimento, usando uma manobra interessante para contornar a questão do privilégio conjugal (pelo qual marido e mulher são isentados da obrigação de revelar na justiça fatos que incriminam o outro).
Kelley: Queríamos que o espectador acreditasse que quando Grace fosse para o banco das testemunhas, ainda poderia ser corrompida por seus próprios vieses. O título da série, “The Undoing” (algo como a queda, o desmoronamento), diz respeito ao desabamento do casamento dela, de sua família e sua vida, mas em última análise também à sua salvação. O advogado do marido dela montou uma defesa magistral, e ela ia orquestrar a anulação dessa defesa. Não existe lei que defina que maridos e esposas não possam testemunhar um contra o outro, mas o privilégio conjugal pode ser dispensado se a defesa chama a esposa para depor. E nada do que ela disse em seu depoimento envolveu comunicações privilegiadas. Quisemos ser precisos, para que pudéssemos justificar a mecânica de tudo, mas não estávamos interessados em explicar tudo tintim por tintim.

Você enxerga a série como uma reflexão sobre como os ricos manipulam o sistema legal?
Kelley: Realmente quisemos dar uma ideia do poder que acompanha a influência de Franklin. O poder e o dinheiro conseguem resultados que estão fora do alcance das pessoas comuns. E isso nos proporcionou uma cena bacana com helicóptero!

Algumas das falas da final foram improvisadas?
Grant: Quando faço Henry cantar, foi a canção que minha família cantava no carro quando íamos passar férias à beira-mar. Essa foi uma improvisação, sim.

Não a parte estranha sobre mariscos?
Grant: Mariscos são uma coisa muito típica de David E. Kelley. Há um tema ligado a peixes presente em todas as séries dele. Ele vive em algum lugar no norte da Califórnia com Michelle Pfeiffer e passa o dia todo num barco, pescando e acariciando e curtindo peixes. De vez em quando eu mandava um e-mail a David para discutir essas falas, mas ele vivia fora do escritório. Ele estava sempre num barco, pescando. E foi obrigado a confessar essa sua mania.

Kelley: Hugh está querendo sugerir que eu cabulava o trabalho? [risos]. Eu não diria que tenho um tema ligado a peixes! Pescarias aparecem no meu trabalho, mas não é uma coisa temática, onipresente. Provavelmente é a manifestação de desejos inconscientes meus: quando estou sentado à minha mesa de trabalho, às vezes gostaria secretamente de estar numa margem de rio.

Como o assassinato, finalmente revelado em flashback, mudou conforme era contado?
Grant: Foi uma coisa que começou meio ambígua.

Kelley: Na concepção original, Jonathan sempre foi culpado. Isso não mudou. Mas a gravidade de sua culpabilidade, sim. A ideia original era que Jonathan teria explodido de repente –um golpe do martelo e de repente ela estava morta. Hugh não queria que houvesse qualquer ambiguidade. Queria que Jonathan fosse um monstro. Eu o olhei nos olhos e disse: “É isso mesmo que você quer? Porque podemos ir por esse caminho, sim.” A maioria dos atores geralmente quer te empurrar na direção contrária: “Tudo bem, posso decapitar sete pessoas, mas posso pelo menos ser simpático?” Já Hugh não teve dúvida. Ele quis ser vilão de verdade. Ele nos incentivou a fazer Jonathan ser um monstro.

Grant: É mais divertido se ele é assassino sem dúvida. E então Susanne Bier quis acrescentar mais detalhes à cena do assassinato. Isso não estava no roteiro. Quando mostramos o assassinato propriamente dito, foi algo que ela e eu montamos, porque David estava de folga, pescando.

Kelley: O assassinato em si sempre fez parte da arquitetura da série. Estava no roteiro, mas não de modo muito detalhado. Os detalhes eram algo que Susanne e Hugh teriam que definir. Às vezes não é aconselhável se ater demais às palavras do roteiro, porque o momento em questão é de tanta fúria, tanta emoção.

Grant: Que fique muito claro, era o roteiro de David. Eu não fiz mais do que colocar algumas cerejas em cima do bolo. Trocamos e-mails por um tempo longo e depois tivemos que ajudar Matilda [a atriz Matilda De Angelis, que faz Elena] ficar à vontade com a besteira que eu havia escrito. Queríamos determinar o que levou Jonathan ao limite. Tivemos uma ideia em que ela diz que Henry e Miguel poderiam ser amigos, ela e Grace poderiam ser amigas, assim todos poderiam se encontrar e tomar chocolate quente ou algo assim. Foi isso que levou Jonathan a explodir, como um cachorro em um carro quando alguém se aproxima do veículo. Escrevi em minhas anotações que aquele não foi o primeiro episódio de violência de Jonathan. Acho que tinham acontecido mais dois que foram abafados.

Entramos numa sala de ensaios com um martelo e ficamos fazendo experimentos. Foi altamente constrangedor, porque foi na primeira semana de filmagens. Coitada dessa atriz, a primeira coisa que ela tem que fazer na América é beijar um homem velho e depois ser espancada até morrer: “Me beije. Quebre minha cabeça a marretadas.” Fiquei com dó dela. E eu não podia prever como seria recebido o passeio de carro com meu filho intercalado com sexo brutal e assassinato. Foi um suspense de roer as unhas!

Quero perguntar sobre algumas coisas que ficaram soltas. O que Jonathan fez com o empréstimo de US$500 mil? Uma parte pequena foi usada para pagar pelos estudos de Miguel, mas o que foi feito do resto?
Grant: Acho que Jonathan podia estar altamente endividado. Me pergunto se Fernando [Ismael Cruz Córdova], quando descobriu que eu estava tendo um caso com sua mulher e que o bebê era dele –se o dinheiro do empréstimo pode ter sido usado para comprar o silêncio dele.

Jonathan é médico, mas parece que nunca usa camisinha. Como é que isso se explica?
Kelley: [rindo] Não sei!

Grant: Também me fiz essa pergunta. Por que Grace e eu só temos Henry? Teria havido algum problema? Acho que em uma das primeiras versões do roteiro, foi mencionado um medicamento que ajuda a pessoa a conceber, e esse remédio seria visto no armário do banheiro. Uma das atrações de Elena era o fato de ser fecunda de uma maneira que Grace talvez não fosse.

Por que Jonathan não jogou a arma usada no assassinato num rio ou no mar? Por que deixar a arma no imóvel de sua família?
Grant: Você se lembra de um momento na praia quando Grace olha para cima e vê uma figura à distância? Eu disse a mim mesmo que ela havia visto Jonathan e então rapidamente joguei o martelo na lareira, em vez de dar um fim melhor a ele. Que idiota.

Tradução de Clara Allain

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