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Falar mal do Rio virou esporte e seu urbanismo não é compreendido

Sem Carnaval, no verão da Covid e da geosmina, o que resta à autoproclamada Cidade Maravilhosa?

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Num ano sem Cacique de Ramos nem Portela, o Carnaval entrou para o rol de saudades que caracterizam os queixumes cariocas. No verão da Covid e da geosmina, o que resta à autoproclamada Cidade Maravilhosa?

Bater no Rio converteu-se numa espécie de esporte. Aqui se encontram supostos embriões de mazelas políticas, econômicas, sociais do país. Pegue o urbanismo como exemplo: o Vivendas da Barra (condomínio da residência pessoal do presidente) é usado como arquétipo da perda de empatia comunitária de moradores que optam por morar em conjuntos de casas ou apartamentos com muros altos e vigilância 24 horas. Isso é verdade e há outros tantos condomínios assim no município.

O risco é incorrer em generalizações. E não perceber que a praia de Copacabana, além de cartão-postal, é um fabuloso projeto de infraestrutura urbana. Quando se alargou a faixa de areia original, construiu-se um complexo sistema subterrâneo sob o calçadão de Roberto Burle Marx, responsável, com pedras portuguesas, pelo primoroso plano pictórico de quatro quilômetros de extensão, concebido tal como uma linda pintura de matriz cubista.

capa revista rio com desenho de pessoas descendo uma rampa e, à direita, o rosto de uma mulher em vermelho
Capa da revista Rio, editada por Roberto Marinho nas décadas de 1940 e 1950 - Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional

Saindo da área turística, as praças Saens Peña e Afonso Pena, na Tijuca, cumprem bastante dignamente o receituário dos manuais de bom urbanismo, com mescla de moradia, comércio de rua (apesar do excesso de farmácias), serviços em escritórios, velhinhos conversando nos bancos e transporte público de alta capacidade. Encontra-se essa vivacidade urbana também no largo do Machado, no Méier, em algumas paradas do trem no subúrbio. Em comparação, nenhuma praça de bairro paulistano tem isso.

Não é bairrismo nem mesmo saudosismo praticado com resquícios do glorioso passado como antiga capital da República. A dinâmica da cidade do Rio padece de incompreensão. Uma metáfora para explicá-la é a própria concentração de uma escola de samba: pode assustar um desavisado tamanha confusão entre pessoas, fantasias e carros alegóricos, porém, instantes depois, tudo se organiza exuberantemente ao adentrar na Marquês de Sapucaí de Oscar Niemeyer.

Nesse não-Carnaval, ninguém dos barracões da Mangueira e do Salgueiro desaprendeu a fazer os desfiles com a profusão barroca, como em Roma, somada a elementos iorubás, do Benin. É um exemplo da essência cosmopolita do Rio de Janeiro, frequentemente vindo dos morros e não das elites.

O carioca vive num pêndulo entre a apropriação da cultura estrangeira e ser estereótipo do brasileiro para gringos. Em “Alô, Amigos”, de 1942, Zé Carioca apresentou a cidade e a cachaça ao Pato Donald ao som de “Tico-Tico no Fubá” e “Aquarela do Brasil”. Duas décadas depois, no filme "O Homem do Rio", Jean-Paul Belmondo protagonizou uma caricata perseguição que passou pelo MAM, de Affonso Eduardo Reidy, e pelo Morro do Pasmado (até então, favela) a fim de exibir a vista tanto do Pão de Açúcar quanto do Corcovado.

Nesse contínuo intercâmbio, foi Le Corbusier, em sua primeira viagem ao Rio, em 1929, que plantou a semente de seu corolário arquitetônico moderno: sobre a cidade existente, imaginou um prédio com quilômetros de extensão, acompanhando a orla do Atlântico e da baía de Guanabara, entrecruzando as montanhas, sempre sobre pilares modularmente espaçados.

Lucio Costa percebeu ali um ponto de partida e, em 1936, convidou o francês para orientar seu grupo de seis arquitetos brasileiros que concebia a sede do Ministério da Educação e Saúde. Tal como uma letra de samba-enredo repleta de contradições, mas emanando alegria, o Palácio Capanema foi o ponto de partida da chamada escola carioca, cuja essência relacionou a regra e o improviso.

A relação é facilmente visualizada no conjunto de edifícios do parque Guinle, projetado posteriormente pelo próprio doutor Lucio. Sobre pilotis, cada prédio tem uma estrutura cartesiana, encontrável em vários países ocidentais não fosse pela fachada composta de uma variedade de cobogós —o tijolo vazado patenteado no Recife.

O mais novo do sexteto do ministério era Niemeyer. Ao fazer sua residência (a Casa das Canoas) em meio à floresta da Tijuca, o carioca seguiu o estilo internacional com cobertura plana, pavimento principal com sala transparente, e embasamento mediando delicadamente construção e topografia natural. Oscar Niemeyer, porém, fez o teto e a piscina com suas singulares curvas, entre as quais aflora uma rocha natural.

Walter Gropius, fundador da Bauhaus, elogiou a beleza da Casa das Canoas ao visitá-la, com a ressalva de que não seria reprodutível. A anedota ajuda a mitologia que Niemeyer criou ao redor de si: ele assumia difíceis desafios técnicos com o concreto armado e ludibriava obviedades sobre o uso dos espaços, todavia, ao final, apresentava o projeto com um traço único, sintético, confiante. Todo seu esforço era sublimado por um resultado aparentemente simples. Talvez Oscar personifique o ethos carioca: fazer o complicado parecer fácil.

Nenhuma dessas características desapareceu. Se não temos mais a Casa Villarino e o Beco das Garrafas dos anos bossa nova, promissoras possibilidades surgem nas mesas dos bares do Momo, Madrid e Bode Cheiroso.

Há a abstinência pela falta dos Cordões da Bola Preta e do Boitatá, capazes de tudo transformar gratuita e descontroladamente, subvertendo ruas centenárias em espaços voláteis. O centro carioca como um melancólico deserto não é exclusividade desta semana. Com o home office pandêmico, o cenário tornou-se desalentador, mas, ao mesmo tempo, esperançoso tamanha disponibilidade: está em curso a mais bem elaborada mobilização para que o centro se torne bairro de moradias. E o Boi Tolo voltará em 2022.

Foi Reidy, no Conjunto Habitacional do Pedregulho, que consubstanciou um pedaço da ideia de Corbusier: um edifício longo, sinuoso que se acomoda suavemente num morrote do bairro de Benfica, na zona norte. Na vista de seus apartamentos constatamos uma síntese do Rio atual: vê-se a deteriorada avenida Brasil, os Complexos do Alemão e da Maré e, entre eles, o castelo Mourisco da Fiocruz, onde se produz a vacina Oxford-AstraZeneca para salvar todo o país.

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