"Quanto a vocês, peço-lhes para não a julgarem, pois toda criatura necessita de ajuda das outras”, escreve Bertolt Brecht (1898-1956) no poema “A Infanticida Marie Farrar”. O fragmento conclui o longa argentino “Crimes de Família” e serviu de guia para a fala do diretor Sebastián Schindel, que participou do Ciclo de Cinema e Psicanálise nesta terça-feira (9).
O filme acompanha dois processos judiciais em que Alicia (Cecilia Roth), uma mulher de classe alta, está envolvida. O primeiro é o do filho Daniel (Benjamín Amadeo), que foi acusado de tentar matar a ex-mulher, e o outro é da empregada doméstica Gladys (Yanina Ávila), acusada de ter matado seu filho recém-nascido. O drama escancara o modo como os dois casos sã o tratados de maneiras diferentes, principalmente pelas vantagens que o gênero e a classe social concedem.
Durante quatro anos, enquanto desenvolvia “Crimes de Família”, Schindel investigou e acompanhou casos de infanticídio e feminicídio que coletou na imprensa. Além disso, recebeu assessoria da ONU Mulheres e de muitos profissionais que trabalham com essas temáticas para revisar e apontar incoerências no material.
Ele diz que na Argentina existem muitos casos de empregadas domésticas que, sob pressão psicológica e falta de assistência médica, acabam não tendo consciência de que estão grávidas até o momento do parto. No filme, somam-se a isso fatores como o abuso sexual e o uso da posição de poder do filho da patroa sobre a empregada.
“A questão é a tragédia social que está por trás. A Justiça não é igual para todo mundo e tem a ver com classe, origem sociológica”, afirma o diretor.
“Nós e fios dispostos de maneira confusa, anárquica, sustentam o refinado desenho da família convencional e bem comportada. A Justiça, no que tange às aplicações práticas, não se distancia desse avesso sombrio que mantém intacto o desenho bordado e limpo da família”, diz Saddi.
Na visão da psicanalista Marta Úrsula Lambrecht, Alicia tinha o filho como uma ferramenta de escape do seu vazio mental e de sua vida fútil. Ela utiliza todos os recursos, financeiros e emocionais, para livrá-lo da pena, torna-se cúmplice de seus atos e é facilmente manipulada por ele, tudo isso para proteger a construção afetiva que tem com o filho.
"Quando as vendas que a deixavam cega caem por terra, ela chora e se sente culpada pelos estragos intencionais que ocasionou a si mesma e aos outros."
Ela ainda reforça que os problemas de Gladys e Daniel estão diretamente relacionados a traumas de abandono. “A carência afetiva, os vínculos disfuncionais no âmbito familiar, a fraqueza da figura paterna são fatores que acarretam sérias consequências no desenvolvimento da personalidade.”
Para Schindel, o poema de Brecht é atemporal ao se tratar da violência de gênero em todas as suas esferas, mas principalmente quando se trata da gravidez indesejada e do rigor da Justiça para mulheres que não têm condições financeiras ou amparo. "Creio que o poema tem uma tremenda atualidade. Até meses atrás, o aborto estava proibido por lei e estava equiparado a um homicídio de grau familiar."
A Argentina aprovou, no dia 30 de dezembro de 2020, o direito de mulheres optarem pelo aborto até a 14ª semana de gestação.
O Ciclo de Cinema e Psicanálise é promovido quinzenalmente pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, em parceria com a Folha e o MIS. O próximo debate será no dia 23 de março, às 20h, sobre o filme "Os 7 de Chicago", de Aaron Sorkin, disponível na Netflix.
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