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Lázaro Ramos imagina Brasil que expulsa negros em seu filme de estreia na direção

'Medida Provisória', com Alfred Enoch, constrói distopia sombria, com quilombos futuristas, sem perder o humor

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mulher negra encara o horizonte

Taís Araújo em cena do filme 'Medida Provisória', dirigido pelo ator Lázaro Ramos Divulgação

Los Angeles

Num futuro próximo, uma ex-motorista de táxi de 84 anos caminha até o banco para receber a primeira indenização do governo brasileiro por conta dos séculos de escravidão no país. O filme “Medida Provisória”, estreia na direção do ator Lázaro Ramos, começa num embalo positivo de esperança, mas logo puxa o tapete do espectador para construir uma distopia sombria, sem perder o humor.

O longa foi exibido nesta semana no festival SXSW, o South by Southwest, que pela segunda vez aconteceu virtualmente. O lançamento do filme no Brasil está previsto para o segundo semestre.

“Medida Provisória” traz a atriz Taís Araújo e Alfred Enoch, ator britânico com raízes brasileiras, no papel de um casal no Rio de Janeiro em meio ao caos depois de um golpe racial no Brasil. No rastro de um fracassado programa de indenização aos negros, o governo cria o projeto “Resgate-se Já”, em que passa a pagar para pessoas de “melanina acentuada” irem morar na África de maneira voluntária.

“Para vocês que querem reparações sociais pelo tempo de escravidão, o governo vai oferecer uma oportunidade única de voltar para a África”, anuncia uma propaganda na televisão, com um homem branco vestido de indígena. “Estamos num país livre, com direito de ir e vir e também de voltar. Pois, então, voltem.”

Em pouco tempo, porém, o projeto se transforma numa medida provisória, e forças armadas começam a caçar nas ruas qualquer cidadão com traços africanos para o mandar à força a países africanos aleatórios. É criado até mesmo o Ministério da Devolução, cuja funcionária mais exemplar é interpretada por Adriana Esteves, num papel que a atriz equilibra entre o cômico caricato e o assustador.

“Meu desejo é que o filme tenha a mesma trajetória do meu livro e da peça ‘O Topo da Montanha’”, disse Lázaro Ramos à repórter, lembrando o livro de memórias “Na Minha Pele”, de 2017, e a peça que ele dirigiu e encenou baseado em texto de uma autora americana sobre Martin Luther King.

“Quero falar sobre esse assunto [racismo] sem vomitar nenhuma verdade e sensibilizar as pessoas, emocionar. Por isso que o investimento do filme é tão grande nos seus três gêneros, na comédia, no thriller e no drama. Espero que a gente consiga conversar sobre o tema”, continuou.

A médica Capitu —papel de Taís Araújo— consegue fugir para um “afrobunker”, espaços escondidos na cidade onde os negros passam a viver, em cenas que trazem as cores do afrofuturismo e também acalorados debates raciais, com todas as suas complexidades.

“Vão renascer os quilombos?”, pergunta Capitu ao chegar ao lugar que um dia foi casa de uma escola de samba. “A gente prefere [chamar de] afrobunker. Quilombo é muito século 18”, responde um morador, vivido pelo rapper Emicida.

Já o advogado Antonio —interpretado por Alfred Enoch— se vê trancado em seu apartamento, onde a polícia é proibida de entrar. Luz e água são cortadas, e ninguém pode entrar para levar mantimentos ou mesmo sua insulina. Ele tem a companhia do amigo ativista André —papel de Seu Jorge—, um blogueiro que não tem medo de provocar as autoridades com sua câmera em mãos.

Lázaro Ramos faz sua estreia em longa de ficção, embora já tenha experiência na direção de teatro, incluindo da própria peça da qual o filme é inspirado, “Namíbia, Não!”, do autor baiano Aldri Anunciação. A peça virou livro em 2012 e ganhou o prêmio Jabuti na categoria ficção juvenil. Ramos assina o roteiro com Lusa Silvestre, de “Estômago”.

“O projeto do filme começou em 2012, e tantos anos convivendo com a mesma história dava uma angústia muito grande por não saber se poderia ser uma história universal e se continuaria relevante”, disse. “Mas a passagem pelos festivais agora tem dado uma tranquilizada. O filme ainda pode cumprir seu propósito.”

Antes do SXSW, “Medida Provisória” passou por festivais menores como o Pan African Film Festival, em Los Angeles, e o Indie Memphis, onde ganhou prêmio de roteiro.

Na pele do protagonista Antonio está o ator britânico Alfred Enoch, que é também brasileiro. Ele ficou conhecido como o bruxinho Dean Thomas nos filmes “Harry Potter” e depois como o charmoso estudante de direito Wes Gibbins na série “How to Get Away with Murder”.

Enoch nasceu e estudou em Londres, tem mãe brasileira e pai britânico, o ator William Russell, que tem uma carreira prolífica na TV do Reino Unido. Russell faz uma ponta em “Medida Provisória”, na primeira vez em que pai e filho contracenam juntos.

“Sempre foi meu sonho, meu pai é minha referência, meu primeiro professor”, disse Enoch num vídeo do seu Instagram, nos bastidores do filme em 2019. “Ele está com 94 anos, achei que nunca teria essa oportunidade.”

Segundo Ramos, Enoch foi uma grande descoberta. “O filme tem uma história de pertencimento, de sentir orgulho de pertencer a um lugar, e eu havia visto uma entrevista do Alfred falando que ele tinha vontade de resgatar suas origens brasileiras. Então entrei em contato através dos agentes e conversamos por um ano. Ficamos amigos antes mesmo de saber se o filme aconteceria.”

Enoch faz sua estreia num filme brasileiro, falando português sem nenhum sotaque. Ele foi ao Rio de Janeiro dois meses antes das filmagens para treinar o idioma e se embrenhou na vida carioca. Andava a pé, pegava ônibus, frequentava as festas na Lapa e curtiu o Carnaval.

“Foi muito bom dirigir Alfred. Primeiro pela disciplina, e segundo pela paixão com a qual ele veio para cá”, disse Ramos. “Ele ficou amigo das pessoas da equipe, da nossa família também. Isso fez com que o trabalho dele no filme seja muito mais emocionante porque está junto com uma descoberta do seu lado brasileiro que ele tanto preza.”

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