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Leão de Ouro de Lina Bo Bardi é troféu raro para uma mulher arquiteta

Prêmio póstumo da Bienal de Veneza reconhece italiana que deixou marcos no Brasil, como o Masp e o Sesc Pompeia

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São Paulo

Embora o comunicado da Bienal de Arquitetura de Veneza anunciando o Leão de Ouro póstumo para Lina Bo Bardi não mencione o fato, ele se impõe.

Comunicado neste 8 de março, Dia Internacional da Mulher, este de um raro reconhecimento dado a uma mulher no exercício da arquitetura.

No Brasil, segundo levantamento recente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo, as mulheres são maioria entre os profissionais da área. Mesmo assim, o reconhecimento, seja salarial ou em termos de projeção, recai com mais frequência sobre os homens, como também atestou o CAU.

Arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi; foto preto e branco mostra uma mulher de meia-idade com longos cabelos, segurando na palma da mão esquerda um minúsculo objeto, algo assim como um sininho, tão pequeno que ela quase o ampara com a mão direita aberta junto à esquerda
A arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi, que venceu neste 8 de março o Leão de Ouro póstumo pelo conjunto da obra - Bob Wolfenson/Divulgação

Não se trata de um fenômeno local. A história da profissão está cheia de exemplos de apagamento da figura feminina, dos quais o talvez mais flagrante seja o Pritzker —prêmio comumente apelidado Nobel da arquitetura— dado em 1991 a Robert Venturi e negado a sua mulher e sócia, Denise Scott-Brown.

A tal ponto que tenhamos ainda que celebrar quando uma mulher é reconhecida nesse campo. Zaha Hadid foi a primeira mulher a receber o mesmo Pritzker, em 2004. Depois dela, quatro arquitetas receberam a honraria, mas a dividiram com seus sócios —ou sócia, no caso de 2020.

Lina Bo Bardi, nascida em Roma em 1914, foi sempre uma mulher entre os homens. Quando se formou arquiteto —pois até hoje na Itália é pouco utilizada a flexão de gênero para o nome da profissão—, em 1939, nem dez mulheres haviam ali se diplomado na carreira.

Comandou canteiros de obra enormes, com mais de 200 trabalhadores, montando no meio da construção seu escritório, pois era como procedia e projetava, propondo soluções e detalhamentos à medida em que as questões iam se impondo.

Foi uma das poucas professoras mulheres na Universidade de São Paulo nos anos 1950, ensinando também para raras alunas do sexo feminino. Até mesmo seu nome parece carregar uma sina —o cantante Lina é apelido de Achillina, feminino de Aquiles. Uma mulher com nome de herói.

Nada disso significa que tenha feito da condição feminina um estandarte, longe disso. Ela se colocava como profissional, não importando seu gênero, e até rechaçava o feminismo, talvez o considerando, em sua contingência história e do centro de sua profissão de fé stalinista, um movimento burguês.

Teve uma atuação pioneira e singular. Antes de se fixar no Brasil, em 1946, passou seus primeiros anos de formada num país minado pela Segunda Guerra. Diante disso, produziu o que era possível —uma vasta obra escrita, colaborando em revistas, enquanto sobrevivia a bombardeios, como o que arrasou seu escritório em Milão.

Lina Bo Bardi testa suporte de vidro para a Pinacoteca do Masp, 1967
Lina Bo Bardi testa suporte de vidro para a Pinacoteca do Masp, 1967 - Lew Parrella/Divulgação

Assim, o Leão de Ouro é o reconhecimento a uma obra brasileira. Não apenas porque foi feita aqui por uma arquiteta naturalizada, mas porque foi feita por uma profissional que entendeu e viveu profundamente seu contexto, assimilado e traduzido em traço próprio.

Buscou em sua atuação conhecer e divulgar o popular nacional; não com um corte ufanista, que ela rejeitava, mas, sim, exaltando o engenho vernacular, as respostas dadas pelo homem da terra aos problemas que tinha de enfrentar.

“Sua carreira como designer, editora, curadora e ativista nos lembra o papel do arquiteto como organizador e, principalmente, construtor de visões coletivas”, diz Hashim Sarkis, curador desta edição da Bienal, a ser inaugurada em 22 de maio, no comunicado de atribuição do prêmio. "Em suas mãos, a arquitetura se torna verdadeiramente uma arte social", disse ainda Sarkis.

A premiação reconhece, assim, a face que talvez seja a verdadeira síntese da arquitetura de Lina Bo Bardi. Projetar é o mesmo que antever, e em seus projetos Lina antevia o uso coletivo das estruturas que concebia. Fiel a suas convicções de esquerda, ela se interessava pelos projetos públicos; dizia nunca ter trabalhado para ricos, casas individuais só umas quantas, para amigos.

Na Bahia, onde viveu e trabalhou em dois momentos, atuou de forma intensa de maneira a recuperar o Solar do Unhão, transformado em Museu de Arte Moderna, e para manter na Ladeira da Misericórdia recuperada sua população original.

Em São Paulo, cidade onde mais tempo viveu e onde morreu, aos 78, em 1992, estão os dois edifícios que mais claramente expressam sua arquitetura da coletividade, o Masp e o Sesc Pompeia.

Muitas vezes saudado pelo engenho técnico que o criou, com seus 80 metros de comprimento, o vão-livre do Masp é uma proeza cívica, muito mais ainda do que estrutural. Ao concebê-lo, Lina deu à cidade um espaço cuja vocação para congregar resiste há mais de 50 anos, no coração da avenida mais simbólica da cidade, a Paulista.

No Sesc Pompeia, dá uma lição de como se deveria interpretar o patrimônio. Ali, manteve o que era peculiar em termos arquitetônicos —no caso, o que identificou como um exemplo pioneiro de estrutura em concreto armado— e históricos —deixando gravada de maneira inequívoca a origem fabril do prédio original.

Num golpe de mestre, levou a rua para dentro do edifício, num dos exemplos mais felizes de integração com o espaço público que há no país.

O sucesso desses dois espaços e sua permanência diante de décadas de uso atestam a clareza da antevisão de Lina. Que possam, em breve, recobrar seu uso, pois este é o real e diário reconhecimento que se faz a sua arquitetura.

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