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'Quo Vadis, Aida?', indicado ao Oscar, narra genocídio que alguns ainda negam

Longa da premiada diretora Jasmila Zbanic acompanha uma tradutora da ONU em guerra étnica na Bósnia

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Alex Marshall
Londres | The New York Times

A cineasta bósnia Jasmila Zbanic se lembra do exato momento quando soube que algo havia dado horrivelmente errado em Srbrenica, pequena cidade em seu país natal que foi palco da pior atrocidade das guerras dos Bálcãs.

Esses conflitos acompanharam a fragmentação da antiga Iugoslávia na década de 1990. Na Bósnia, onde muçulmanos conviviam havia muito tempo com sérvios étnicos e croatas, as pessoas se viram de repente travando uma guerra étnica.

Homem vestido de militar ao lado de mulher que segura altofalante
Cena de 'Quo Vadis, Aida?', de Jasmila Zbanic - Imdb

Em julho de 1995 o Exército sérvio bósnio invadiu Srbrenica, à qual a ONU havia conferido o status de refúgio seguro. Zbanic, então estudante, soube que a cidade fora atacada quando estava passando tempo no estado americano de Vermont, tendo escapado da guerra temporariamente para fazer um estágio no teatro.

Foi só algum tempo mais tarde que ela soube que soldados haviam separado 8.000 homens e meninos muçulmanos de suas famílias na cidade e os assassinado. Mas ela já conhecia a violência que provavelmente seria vista quando o Exército tomasse controle da cidade.

“Meu mundo desmoronou completamente”, ela recordou em entrevista recente por vídeo. “A ONU deveria proteger a cidade, mas nem uma única bala foi disparada.”

“No que você vai acreditar quando não há regras? Aquilo queria dizer que a violência estava vencendo.”

Passados mais de 25 anos do massacre, que alguns nacionalistas sérvios ainda negam que tenha sido genocídio, Zbanic, de 46 anos, está chamando a atenção do mundo para a história de Srbrenica com “Quo Vadis, Aida?”.

O filme acompanha Aida, papel de Jasna Djuricic, tradutora da ONU, em seus esforços cada vez mais desesperados para convencer soldados das Nações Unidas a salvar seu marido e seus filhos e não deixar que sejam massacrados.

“Quo Vadis, Aida?” foi indicado ao prêmio de melhor longa-metragem internacional no Oscar. No Bafta, a versão britânica do Oscar, Zbanic foi indicada na categoria melhor direção. O filme está disponível na Amazon Video.

Zbanic contou que tinha 17 anos quando a guerra bósnia começou. Ela sempre quis ser diretora de cinema, tendo crescido vizinha de um cinema em Sarajevo, a capital bósnia, e estudado cinema na academia de cinema e teatro da cidade durante a guerra.

As aulas na academia continuaram apesar de Sarajevo estar sitiada, de modo que raramente havia energia elétrica e Zbanic corria o risco de ser atingida por franco-atiradores cada vez que saía de casa. “Cada vez que a eletricidade voltava por alguns dias, assistíamos a filmes sem parar, numa maratona doida”, ela contou.

Seus primeiros longas não foram sobre a própria guerra —Zbanic optou por enfocar o legado do conflito.

Cena do filme 'Grbavica', que ganhou o Urso de Ouro, em 2006 - France Presse- AFP

“Grbavica”, seu trabalho de estreia, trata de uma mulher que foi estuprada na guerra e cria um filho concebido dessa violência. O filme recebeu o prêmio máximo do Festival de Cinema de Berlim em 2006 e fez dela um dos nomes mais marcantes entre os diretores bósnios.

“For Those Who Can Tell No Tales” acompanha uma turista australiana que se hospeda num spa bósnio e então descobre que o lugar foi palco de crimes de guerra.

Zbanic contou que pensou muitas vezes em fazer um filme sobre o massacre de Srbrenica, mas torcia para outro diretor o fazer antes. “Era demais para mim, emocionalmente falando”, afirmou.

Cinco anos atrás, ela finalmente se sentiu capaz de fazer o filme ela própria, incluindo ser capaz de lidar bem com potenciais críticas de jornais e políticos nacionalistas sérvios, dentro e fora da Bósnia, alguns dos quais minimizam o massacre ou negam que tenha sido um genocídio.

O prefeito de Srbrenica, Mladen Grujicic, é sérvio étnico e já foi acusado de negar que o massacre tenha sido um genocídio (ele não respondeu a um pedido de entrevista para este artigo).

“Pensei ‘sei que vai rolar muita baixaria, mas estou preparada’”, disse Zbanic.

A criação do filme foi uma experiência dolorosa para alguns dos envolvidos. Aldijana Kaplan, de 34 anos, uma das figurantes, disse em email que foi detida num campo de concentração durante a guerra, quando era criança. Quando assinou contrato para trabalhar em “Quo Vadis, Aida?”, contou, o fez apenas porque gostou da ideia de ter a experiência de trabalhar num filme.

Mas, enquanto filmava uma cena em que soldados sérvios bósnios entram em um complexo das Nações Unidas e jogam pão para os refugiados desesperados, Kaplan desmoronou. “Aquilo me lembrou da mesma cena que aconteceu quando eu estava no campo”, contou.

Segundo Zbanic, não foi o único momento desse tipo durante as filmagens. Enquanto dirigia uma cena que envolvia homens sendo levados embora em caminhões, ela estava orientando os atores sobre o que fazer quando um figurante a interrompeu. “Ele falou ‘não foi desse jeito que nos levaram'. 'É assim que a gente teve de subir no caminhão. É isso que nos estavam mandando fazer’”, disse Zbanic. Ela soube então que o figurante passara seis meses detido num campo de concentração durante a guerra.

“Esse é um tema que ainda é muito doloroso na Bósnia”, comentou a diretora. “Passados 26 anos, as mães ainda procuram cerca de mil corpos.”

Djuricic, de 54 anos, que representa Aida, também contou que foi quase insuportável filmar uma cena em que ela teve de procurar os ossos de seus filhos num salão grande onde restos mortais estavam empilhados. “Tudo parecia tão real, aquele espaço, os restos mortais”, ela disse. “Foi o último dia da filmagem e havia um silêncio estranho no set.”

Jasmila Zbanic, diretora de 'Quo Vadis, Aida?' e 'Grbavica', posa com o Urso de Ouro em Berlim - REUTERS

Zbanic disse que até agora está agradavelmente surpresa com as reações a seu filme na região dos Bálcãs. Alguns jornais sérvios escreveram textos negativos sobre seu trabalho (o tabloide Informer a descreveu como “odiadora de sérvios”). Algumas poucas pessoas postaram comentários negativos em sites de resenhas de filmes como Google e IMDB, questionando a precisão do filme (“é em grande medida desinformação, ódio nacional, etc.”, diz um comentário que exemplifica muitos outros).

Mas a diretora se surpreendeu com a reação positiva de alguns veículos. Escrevendo no site do Centro Sérvio de Cinema, entidade financiada pelo governo, Ivona Janjic descreveu “Quo Vadis, Aida?” como “de longe um dos melhores filmes regionais dos últimos anos” e o elogiou por ter sido feito “sem o viés nacional-nacionalista usual”.

Zbanic jura que “Quo Vadis” não é um filme de vingança ou que quer apontar culpados. “A Sérvia não é o que é seu governo”, ela disse. “Nunca foi.” Disse que fez o filme porque quis “compartilhar pelo menos 1% do sofrimento” das mães que ainda procuram os restos mortais de seus filhos e quer que os jovens nos Bálcãs vejam o que aconteceu de fato em Srbrenica, para terem mais empatia uns com os outros e evitarem as divisões étnicas.

Zbanic convidou cem jovens —muçulmanos e sérvios e croatas étnicos— para assistir à première do filme em um centro memorial em Srbrenica. “Chorei sem parar”, contou em email o jornalista sérvio bósnio Sladjan Tomic, de 25 anos, dizendo que o filme trouxe uma visão honesta do que aconteceu, algo que ele não teve quando era criança.

“Infelizmente, o filme não vai adiantar muito se meus pares sérvios não o verem”, ele disse. Mas tem alguma esperança de que o vejam se “Quo Vadis, Aida?” receber um Oscar.

Zbanic disse que a mensagem de seu filme não é apenas sobre Srbrenica. Segundo ela, todos os genocídios precisam ser discutidos. É a única maneira de as pessoas aprenderem com eles e não deixar que ocorram outros.

“Vamos viver com os olhos abertos ou fechados?”, ela disse. “Essa é a questão.”

Tradução de Clara Allain

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