Descrição de chapéu

German Lorca moveu o concreto da metrópole com seu olhar aceso

Fotógrafo foi na contramão de seus pares ao registrar não a paisagem, mas os habitantes das cidades modernas

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Um belo rapaz encosta o corpo numa vidraça, o olhar perdido no horizonte e uma das mãos do lado de cá, de quem vê a cena fora do quadro. As folhas de vidro da janela esquartejam a cena, um campo geométrico, de ângulos retos, que dão ordem à carne —o homem dentro da arquitetura, enquadrado por suas linhas.

O artista German Lorca, morto neste sábado, aos 98, batizou essa fotografia “Le Diable au Corps”, ou o diabo no corpo. Ele pensava ser esse o primeiro trabalho saído de seu estúdio, na época ainda no Brás, bairro do centro paulistano, a romper a barreira da arte, a imagem que deixava de ser simples registro e ganhava então certa aura.

O diabo, Lorca sabia, estava nos detalhes. E essa tal aura, no caso, era visível nos contornos faiscantes do modelo, a pele que brilha —olhos, lábios e dedos— por causa da solarização, uma técnica que o americano Man Ray já havia feito virar moda nos círculos surrealistas, mas que chegava à São Paulo dos anos 1940 como manifesto sedutor e fantasmagórico da modernidade.

Na fotografia "Le Diable au Corps" (1949), de German Lorca, um belo rapaz encosta o corpo numa vidraça, o olhar perdido no horizonte e uma das mãos do lado de cá, de quem vê a cena fora do quadro; as folhas de vidro da janela esquartejam a cena, um campo geométrico, de ângulos retos, que dão ordem à carne
Fotografia "Le Diable au Corps" (1949), de German Lorca - Reprodução

Lorca, o último remanescente da era de ouro da fotografia moderna no país, já mostrava, por outro lado, não abraçar sem ressalvas o afã revolucionário, às vezes esterilizante, dos dogmas impostos pelo modernismo nessa sua estreia como artista.

Sua fotografia, sem dúvida, está ancorada no olhar ultrageométrico da década de 1950, o auge do construtivismo na cena artística do país, o concretismo nas telas e nos versos a reboque da industrialização galopante da era JK, o delírio de Brasília e a verticalização vertiginosa de São Paulo, a cidade onde ele nasceu.

Mas resiste em sua obra, e no seu olhar aceso, como ele mesmo gostava de dizer em entrevistas, um calor transbordante, o sangue quente que faz mover o concreto, o metal e o vidro da metrópole.

Não é um acaso que São Paulo e Nova York, paliteiros infernais de arranha-céus, são as cidades que ele mais retratou. Seu olhar, no entanto, vai além do espetáculo estrutural das torres de concreto, dos faróis dos carros, das luzes de Natal, dos letreiros e néons.

Na contramão da obra quase abstrata dos fotógrafos de sua geração, como Thomaz Farkas e Geraldo de Barros, do mesmo Foto Cine Clube Bandeirante que levou todos eles à fama, Lorca não desviava o olhar da gente que habitava essas cidades em transe, o povo que move as engrenagens rumo a um futuro que hoje sabemos ter fracassado.

Um exemplo é nítido. Quando escalado como o fotógrafo oficial do quarto centenário de São Paulo, em 1954, Lorca fez uma de suas imagens mais conhecidas. Diante da Oca de Oscar Niemeyer, a estranha calota polar que então brotava no meio do parque Ibirapuera, pôs uma avó e seu neto, talvez como índice de escala, para ver o monumento.

O registro fotográfico mostra na superfície o assombro daquelas formas de contornos alienígenas, o símbolo de uma nova ordem estética pousado ali como marco definitivo de um destino manifesto.

O futuro será arrojado e brilhante, e já está entre nós, parece sublinhar o descampado ao redor. Isso porque o esplendor da Oca surgia no meio da terra crua, ainda marcada pelo trânsito febril dos tratores.

Lorca, na figura da avó e do neto diante do prédio de Niemeyer, mede a estranha temperatura do presente —o passado e o futuro olham de mãos dadas para uma ideia de moderno que ainda mal se enquadrava naquele instante.

Fotografia de German Lorca mostra uma mulher idosa e uma criança de mãos dadas em frente à Oca, no parque Ibirapuera, em 1954
Fotografia de German Lorca mostra a Oca, no parque Ibirapuera, em 1954 - Reprodução

Outra de suas imagens clássicas, da mesma época, mostra dois meninos sentados perto da entrada de um prédio de apartamentos. A fachada branca e lisa recortada pelas janelas retangulares da construção surge atrás das crianças como elemento de ordem externa, a força das linhas da cidade moldando as vidas ali.

É a mesma sensação de “Malandragem”, um flagra de clima noir em que dois homens se veem frente a frente emoldurados por mais sombra que luz, um numa porta, outro num degrau perto dela. O efeito é de espelhamento, o corpo anônimo no asfalto à noite, mas há uma intimidade com esse corpo e com essa noite que o olhar de Lorca retrata atento às amarras do quadro.

Janelas se multiplicam em suas fotografias. São os enquadramentos naturais de uma cidade densa, vista do alto dos prédios, do para-brisa dos carros e, no caso de Lorca, da lente da câmera. Mas, por mais que os ângulos sejam retos, por mais ordem que essas molduras imponham às composições, uma espécie de cabresto do olhar, Lorca não se afasta de um fulgor acidental.

Suas imagens violam tanto as tais amarras do quadro quanto o espírito de seu tempo —austero, clean, só ar, luz, sombra e geometria— e parecem alicerçadas no acidente, no imprevisível. Muitas de suas cenas urbanas, aliás, são flagras sob chuva, a luz dos postes refletida nas poças d’água que fazem do asfalto outro espelho, o palco fluido e movediço de uma vida indomável.

Enquanto outros modernistas então multiplicavam espelhos e janelas na construção de visões caleidoscópicas, levando a fúria da cidade à abstração, como as “Fotoformas”, de Geraldo de Barros, Lorca parecia ter os pés firmes no asfalto e um olhar mais preso às gotas da garoa escorrendo no vidro da janela do que à robustez das construções.

Muitas dessas imagens de chuva na cidade, aliás, estão na grande mostra dedicada à fotografia moderna brasileira que o MoMA, em Nova York, abriu neste fim de semana marcado pela morte de Lorca. É uma triste coincidência que talvez jogue mais luz sobre a obra de um artista que começou a fotografar numa época em que imagens tremidas ou desfocadas eram proibidas, como ele lembrava falando do espanto que uma imagem de ondas arrebentando na praia, obra de Thomaz Farkas, causou nos anos 1940.

Lorca gostou da ideia. Retratou meninos correndo, galinhas agitadas, jarros e vasos fora de foco e telhas empilhadas, sendo estas últimas imagens talvez o mais perto que esteve da abstração em toda a sua obra. Era o traço seco, metonímico do progresso, os telhados construídos às pressas na metrópole em formação.

No fundo, sua obra registra esse grande tremor. Em quase um século de vida, Lorca, ainda lúcido e bastante ativo nos últimos anos, começou a construir sua obra num momento que a fotografia não frequentava o mundo da arte levada a sério e nos deixa na era do selfie, em que todos são fotógrafos e a imagem nunca foi tão banal, do nada ao terremoto diário das redes sociais que nos anestesiam. Mas fica o frescor de seu olhar aceso.

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