Descrição de chapéu The New York Times

Dois irmãos posaram para uma tela, mas só um viveu para a ver no Metropolitan

Pintura 'The Black Boys' está em exposição da pintora Alice Neel no museu nova-iorquino até agosto

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John Leland
Nova York | The New York Times

Quando Jeff Neal tinha oito ou nove anos, um amigo mais velho costumava levar o menino e seu irmão Toby em passeios pela cidade de Nova York. Eles iam ao Empire State Building, ou aos parques, e um dia visitaram um grande apartamento, repleto de quadros, no Upper West Side. Isso aconteceu na metade da década de 1960.

O apartamento pertencia à pintora Alice Neel, e era o tipo de lugar do qual pessoas entravam e saíam livremente. Neel ainda não era famosa —isso aconteceu uma década antes que ela tivesse sua primeira mostra num museu— e, se os visitantes atraíam sua atenção, ela às vezes pedia que posassem para retratos.

Homem negro idoso ao lado de pintura
Jeff Neal está ao lado de uma pintura de Alice Neel, "The Black Boys", que retrata ele próprio e seu irmão, Toby, no Museu Metropolitano de Arte de Nova York, em 17 de março de 2021 - Amr Alfiky / The New York Times

O amigo dos irmãos, Allen Thomas —que servia como uma espécie de irmão mais velho postiço e organizou as visitas—, garantiu a eles que Neel um dia seria uma pintora famosa.

Os dois meninos posaram para a pintora cerca de 12 de vezes, voltando semana após semana. E ela sempre dava doces a eles, recorda Jeff Neal, de 64 anos. “Era isso que me segurava naquela cadeira.” Mas depois disso, nada.

Os dois irmãos cresceram. Jeff Neal viu Neel na televisão com o presidente Jimmy Carter. Ela foi entrevistada no The Tonight Show por Johnny Carson. Tobias se encontrou com ela por acaso na porta de um restaurante cubano na Broadway, no começo da década de 1980. “Perguntei o que tinha acontecido com o quadro”, ele recorda.

E ela respondeu que tinha realizado algumas mudanças, para tentar vender a peça, mas que nada mais havia acontecido. Foi a última vez que ele a viu viva.

Quando Toby Neal morreu, em 2010, Tobias mencionou o quadro no serviço fúnebre e, quando as pessoas perguntaram onde o poderiam ver, ele respondeu “ninguém sabe.”

Agora, o paradeiro da obra foi revelado.

Jeff e Toby Neal, com sua mistura infantil de graça e tédio, contemplam os visitantes em um lugar de destaque, na mostra “Alice Neel: People Come First”, uma retrospectiva que abarca toda a carreira da pintora e está em cartaz no Met, o Museu Metropolitano de Arte de Nova York, até o dia 1º de agosto. É a primeira vez que o quadro é mostrado na cidade de Nova York.

Quadro mostra dois meninos negros lado a lado
'The Black Boys', de Alice Neel, de Jeff e Toby Neal no Metropolitan Museum of Art de Nova York, 17 de março de 2021 - Amr Alfiky / The New York Times

Numa tarde de março, antes da abertura da exposição, Jeff Neal e sua mulher, Gina, estavam postados diante do quadro, vendo a tela pela primeira vez. Ele se define como mestre barbeiro, mas está mais ou menos aposentado, desde que sofreu um acidente de carro.

A mulher, em pé atrás dele, tinha os braços em torno de sua cintura. Os dois estão juntos desde o ensino médio. Tobias, de 77 anos, assistia à cena.

“Sempre senti que o quadro voltaria para mim”, disse Neal, sorrindo diante da imagem que o mostrava menino, ao lado do irmão, que morreu há 11 anos.

“Eu sonhava com isso, e perguntava a Allen se ele tinha alguma novidade. Ele respondia que não, não tinha ouvido coisa alguma. Eu a via no noticiário e ficava tentando imaginar o que poderia ter acontecido com o meu quadro.”

Neel, que morreu em 1984, pintou centenas de retratos em sua carreira que durou seis décadas —alguns de pessoas famosas, como Andy Warhol e Allen Ginsberg, mas outros simplesmente de pessoas de seu bairro cujos nomes se perderam no tempo.

Na entrevista a Carson, ela disse que gosta de "pintar pessoas que foram arruinadas pela corrida desesperada pela sobrevivência em Nova York". "São pessoas machucadas, mutiladas, mas não desistem.”

No começo da década de 1960, Tobias, aluno da Universidade Columbia, foi apresentado a Neel por um amigo comum, e a começou a visitar. Tobias cresceu no Brooklyn e era aprendiz de boêmio, um escritor e pesquisador que se tornou o primeiro secretário literário de Ginsberg e participou dos movimentos políticos radicais de sua era.

O apartamento de Neel se tornou “um ponto de parada" para ele, disse acrescentando que mais tarde começou a frequentar a casa de Ginsberg no East Village. Neel servia café e os dois conversavam sobre política, ele conta. “Ela era muito engraçada.”

Neel, reconhecida como “uma das pintoras mais radicais do século”, como a descreve o texto do catálogo da mostra no Met, tinha pouco mais de 60 anos, na época, e havia começado a emergir de uma relativa obscuridade.

Ela se tornou conhecida nos círculos de vanguarda por aparecer no filme beat “Pull My Daisy”, de 1959, e costumava “ficar imensamente alegre” se alguém pagava algumas centenas de dólares por um quadro seu, conta seu filho, Hartley Neel.

Muitas vezes, ela parava desconhecidos na rua e pedia que posassem para quadros, ele acrescenta. Neel se definia como “uma colecionadora de almas”.

Neel concluiu o quadro dos irmãos Neal mas não ficou satisfeita com o resultado até alguns anos mais tarde, quando acrescentou uma coluna ao fundo a fim de dar equilíbrio à imagem.

Depois disso, o quadro ficou pendurado na parede de seu apartamento por mais de uma década, em companhia de centenas de retratos não vendidos. “Ela amava o quadro”, seu filho diz.

Quando a jornalista Patti Goldstein escreveu um perfil de Neel para a revista New York, na década de 1979 —“o edifício decadente na esquina da rua 107 com a Broadway”, o texto principiava, “passou por seus melhores dias muito tempo atrás”.

Neel explicou as telas acumuladas, dizendo que jamais despertou seu "interesse da imaginação popular", e por isso, muitas pessoas não colecionam seus trabalhos.

Mas Goldstein sabia reconhecer arte de alta qualidade quando a via. Ela comprou “The Black Boys” de Neel, e o quadro sumiu de vista por algum tempo.

“O quadro não se perdeu, mas não existiam arquivos informando para quem ele havia sido vendido”, disse Ginny, a mulher de Hartley Neel, que não conhecia a identidade dos meninos no quadro. Goldstein morreu em 2006. Sua companheira, Sandra Powers, se recusou a responder perguntas sobre o quadro.

Em 2011, a obra foi discretamente vendida à Tia Collection, uma coleção privada do Novo México, e ficou naquele estado americano até uma mostra em Tucson, no Arizona, em 2016.

Mulher olha quadros em museu
Um visitante na mostra de Alice Neel, de Jeff e Toby Neal no Museu Metropolitano de Arte de Nova York, em foto de 17 de março de 2021 - Amr Alfiky / The New York Times

Era só uma das pontas soltas na longa carreira de Alice Neel. “Há quadros que ela deu de presente nas décadas de 1930 e de 1940 que não sabíamos que existiam, antes de aparecerem em leilões”, disse Ginny Neel.

Tobias continuou a procurar o quadro. Jeff e Ginny Neal tinham uma família para criar. Alice Neel morreu em 1984. Toby Neal morreu em 2010.

Por fim, uma foto do quadro, truncada, apareceu em um catálogo de uma exposição da galeria David Zwirner, em Nova York, mas a pintura não era parte da mostra.

Quando Tobias mostrou o catálogo a Jeff Neal, ficou entusiasmado, disse Neal.

“Porque era algo que eu vinha procurando há muito, muito tempo, e seria uma honra para mim poder representar aquele quadro, por mim e por meu irmão. Ainda estou aqui. Alice já se foi, e Toby já se foi.”

Na semana anterior à abertura da mostra do Met, Ginny e Hartley Neel, Jeff e Gina Neal, o filho deles, Desmond, e Tobias puderam ver o quadro que procuravam há tanto tempo, em uma visita privativa.
Randy Griffey, um dos curadores da mostra, disse que era “especial” poder vincular um nome e uma pessoa a um dos retratos anônimos de Alice Neel.

Tobias se deslocava animadamente entre a família Neel e a família Neal, contando histórias de meio século atrás, um mundo muito diferente. Ele entende a pintura como produto de duas amizades —com Neel e com os irmãos Neal— e de uma cidade que no passado fomentava essas conexões.

O filho de Neel definiu a obra como um registro da confiança que existia entre sua mãe e as pessoas que ela retratava, e da completa abertura dos dois meninos a uma nova experiência.

Gina Neal teve dificuldades para definir que qualidade especial de seu marido o retrato capturava. Mas ela resumiu dizendo “o jeito dele de olhar, há uma solidão, como se ele estivesse tentando descobrir o que estava acontecendo". "Ela capturou tudo isso.”

A última palavra coube a Jeff Neal. Depois de lamentar que seu irmão não estivesse ali para compartilhar daquele momento, ele disse “ela, que era da parte fina da cidade, estava olhando para duas crianças do gueto, e mostrando nossa beleza”.

E lá estava ele, na parede de um magnífico museu que jamais havia visitado, mas parecendo estar perfeitamente em casa.

Tradução de Paulo Migliacci

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