Descrição de chapéu

Carlito Carvalhosa se equilibrava entre leveza e brutalidade em sua obra

Artista plástico, morto na quinta, era um dos nomes mais marcantes da cena contemporânea brasileira

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Era uma praia em dia nublado, nas palavras dele. Os postes de luz deitados, atravessados de fora a fora no branquíssimo prédio modernista, turvavam a visão.

Carlito Carvalhosa encheu o espaço com essas toras de madeira que antes sustentavam os holofotes da cidade. Mas o efeito ali então era o contrário, uma massa orgânica escura se apoderava da alvura programada, retilínea de Oscar Niemeyer no anexo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo.

Morto nesta quinta, aos 59, de complicações de um câncer, Carvalhosa foi um dos nomes mais relevantes da cena contemporânea, autor de uma obra ao mesmo tempo delicada e monumental, marcada por uma brutalidade que transforma o espaço mas também às vezes transparente a ponto de quase desaparecer.

Enquanto os postes viravam obstáculo no galpão branco, um labirinto horizontal numa de suas últimas instalações de peso há oito anos, a exuberância da paisagem do Rio de Janeiro era reduzida a maquete agigantada no Museu de Arte Moderna da cidade, o Pão de Açúcar como espécie de parasita pálido suspenso do teto da galeria modernista de frente para o mar.

Outras de suas esculturas, no entanto, não passavam de atmosfera sutil. Era o caso dos véus brancos que formavam um redemoinho translúcido no átrio da Pinacoteca, em São Paulo, e depois numa galeria do MoMA, em Nova York. Ou das luzes no chão, teto e paredes de um espaço de arte que durou bem pouco na sala de um velho hotel no centro paulistano, a luz transbordante que vazava para a calçada escura do lado de fora.

O zunido elétrico, trilha sonora daquela caixa de luz cegante ali, contrasta com o teatro de sombras formado pelos véus. Microfones na Pinacoteca gravavam os passos e sussurros do público que eram tocados em alto-falantes horas depois, o vestígio de presenças mortas logo reavivado no presente dos novos visitantes, como quem repisa o que esqueceu instantes atrás.

Essa câmara de ecos de Carvalhosa, frágil como vestido de noiva, tinha o mesmo poder acachapante das árvores que ele pendurou do teto do Palácio da Aclamação, em Salvador, e outras intervenções maciças, coisa máscula e musculosa de mover montanhas.

No arsenal de materiais que Carvalhosa mobilizou em suas esculturas, qualquer entendido poderia enxergar o vocabulário dos minimalistas americanos, do peso rochoso e metálico de Robert Smithson, Carl Andre e mesmo Richard Serra até a fragilidade elétrica, luminosa de Dan Flavin.

E, nessa mesma pegada etérea, seus desenhos pareciam seguir até certo ponto a vontade cinética de outros artistas que flertavam com a luz em seu estado mais radiante, entre eles François Morellet.

Mas o artista talvez estivesse às vezes mais perto do asfalto ou de seu toque áspero, às vezes questionando a escultura clássica com suas peças de gesso, o mármore travestido capaz de flutuar na galeria.

Na Casa Sete, o hoje mítico ateliê paulistano que juntou nomes como Fábio Miguez, Nuno Ramos, Paulo Monteiro e Rodrigo Andrade, Carvalhosa repensou a pintura com esse mesmo peso e leveza complexos, usando um gestual forte e matéria suficiente para fazer das telas quase esculturas, formas que extrapolassem o plano do quadro.

Ele dizia saber estar mexendo com demônios. Ninguém é pintor incólume a esta altura da história, mas seu olhar era despojado a ponto de não ver isso como entrave. Uma de suas séries, de formas abstratas pintadas sobre espelhos, não poderia ser mais clara nesse sentido —uma obra que devolve o olhar a quem observa por entre as frestas de cores escorridas, a dissolução de manchas coloridas.

Seus trabalhos mais recentes ensaiavam uma junção desses fatores. Os desenhos e pinturas não se sustentavam sozinhos. Havia uma mise-en-scène, uma vontade cenográfica que exaltasse a leveza dessas mesmas peças muitas vezes rasgadas, violentadas. Na galeria, lâmpadas fluorescentes em cascata lembravam trovoadas. Das telas emergiam dedos, lábios, partes do corpo, aqui figuras humanas que tentavam fugir da superfície plástica, triste prisão para um espírito maior do que o corpo.

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