Na rua, na chuva, na fazenda, Hyldon chega aos 70 anos com soul rebelde e romântico

Cantor ganha relançamentos em streaming e vinil, lembra ciúmes de Roberto Carlos e período sem oportunidades

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São Paulo

“Eu me considero um sobrevivente”, diz Hyldon, cantor, compositor, produtor e guitarrista que marcou época no Brasil dos anos 1970. A expressão não é um exagero. Do triunvirato da soul music brasileira, ele é o único que segue ativo, já que Tim Maia morreu em 1998 e Cassiano, que há anos vivia recluso sem fazer shows ou gravar músicas, agora está internado em estado grave no Rio de Janeiro.

Nos últimos dias, Hyldon fez 70 anos, data celebrada com uma série de lives beneficentes ancoradas no canal do Blue Note. O disco "Deus, a Natureza e a Música", seu mais experimental, ganha uma versão em vinil no segundo semestre e “Sabor de Amor”, seu álbum de 1981, enfim chegou às plataformas de streaming —e há outros relançamentos digitais programados.

O cantor e compositor Hyldon, ícone da soul music brasileira
O cantor e compositor Hyldon, ícone da soul music brasileira - Divulgação

Hyldon também continua produzindo. No ano passado lançou “Soulsambarock”, um disco inteiro de inéditas, algo que só voltou a ser rotina para ele nos últimos 15 anos, quando viveu um processo de redescobrimento depois ficar encostado, como diz, entre as décadas de 1980 e 2000.

“Passei uma fase revoltado”, ele diz, sobre o começo dos 1990, depois que o disco “Hyldon”, de 1989 e já lançado por um selo independente pequeno, não foi capaz de o reposicionar no cenário musical do país.

“Eu ainda tinha os direitos autorais, pintava um show aqui e outro ali. Mas o pior momento foi quando o [Fernando] Collor pegou o dinheiro todo da praça, né? Ninguém tinha dinheiro. Os direitos autorais foram retidos, ninguém contratava para show. Fiquei tenso, já estava com uma filha.”

Durante a década de 1990, ele se dedicou a produzir peças e músicas infantis. Foi ele quem criou a música do Seu Boneco —“ê ô ê ô, Seu Boneco é o terror”—, em trabalhos com Lug de Paula, filho de Chico Anysio. Depois, morou durante seis anos em Teresópolis, no Rio.

Duas versões de seus maiores hits foram fundamentais para seu retorno à rotina de shows e discos. São eles “Na Rua, na Chuva, na Fazenda”, pelo Kid Abelha, e “As Dores do Mundo”, pelo Jota Quest.

Nos últimos anos, ele também teve uma música incluída na trilha de “Cidade de Deus”, tocou em três edições do Rock in Rio, gravou com o Mano Brown, dos Racionais MCs, e desde 2009 mantém uma rotina de novos discos e shows.

“Não é que fiquei no ostracismo, mas fiquei sem oportunidade”, ele diz. “Eu e vários artistas. Bota aí Lô Borges, o Belchior. Todos ficaram um tempão sem gravar.”

Entre os anos 1960 e 1970, Hyldon viveu a explosão da soul music brasileira, que fazia sucesso tanto nos bailes black —movimentação que vinha junto na esteira da exaltação da beleza negra, com reflexos na moda e no comportamento— quanto nas gravações românticas.

Ele ouvia Marvin Gaye, Aretha Franklin, Otis Redding, The Temptations e somou as influências americanas à cultura nordestina da família e o clima daquele Rio de Janeiro em “Na Rua, na Chuva, na Fazenda”, seu disco clássico de 1975.

“O que aconteceu comigo, Cassiano e o Tim foi que as músicas de baile não tinham representantes brasileiros. Naquela época, pouca gente sabia inglês. Então quando a gente apareceu, foi possível ter uma música que eles pudessem cantar. E fomos super bem recebidos nos bailes. Alguns a gente tinha que fazer playback porque não tinha condição nenhuma, mas a gente só tocava nossos discos. Os únicos discos brasileiros que tocavam nos bailes eram os nossos.”

Ele se lembra desse período de valorização da cultura negra. “Para mim, foi maravilhoso, sabe? Porque eu sofro preconceito. Se eu estiver no shopping andando e passar uma mulher branca, ela bota a mão na bolsa. Sou nordestino, tenho [indígenas] pataxós na família. Sou um prato cheio para os skinheads —que de vez em quando encontro na Augusta.”

Hyldon era também um rebelde. Começou a tocar guitarra profissionalmente quando tinha 16 anos, no auge da Jovem Guarda. Tocou ou produziu trabalhos de nomes como Erasmo Carlos, Wanderléa e Tony Tornado, além de Jorge Mautner, Odair José e o próprio Tim Maia, entre muitos outros. Quando se tornou um dos grandes vendedores de discos do país, nos anos 1970, viveu embates com a gravadora.

“Tinha esse problema. Toda vez que está vendendo, a gravadora quer outro [disco] igual. Ou então eles inventam outros caras iguais. Queriam que eu gravasse um disco tipo ‘Na Rua’. E o outro disco, ‘Deus, a Natureza e a Música’, é experimental, não tem nenhuma balada E não abro exceção para porra nenhuma.”

Hyldon então trocou de gravadora e, na CBS (hoje, Sony), gravou “Nossa História de Amor”, esse sim um disco romântico. Foi quando soube que talvez estivesse gerando ciúmes na maior estrela do selo, Roberto Carlos.

“Começou a tocar no rádio a música chamada ‘Nossa História de Amor’. Aí o divulgador veio falar ‘pô, Hyldon, a música tá bombando nas rádios, mas recebemos uma ordem para não tocar o disco’. E aqui no Rio eu era muito amigo dos programadores [de rádio]. Sempre fui um cara simples, falo com todo mundo, a moça do cafezinho, levava disco pra eles. Quando soube disso, pirei. Não posso acusar o Roberto nem o [diretor artístico da CBS] Evandro. Mas vi o Fagner falando isso também, que o Roberto tinha ciúmes e ele teve que sair da gravadora.”

“Sabor de Amor”, o disco que agora chega ao streaming, já foi bancado pelo próprio Hyldon. Romântico, o álbum foi feito depois que ele viajou à Bahia e se casou com sua mulher, Zoé, na cidade de sua família, Morro do Chapéu, entre a Bahia e Pernambuco, próximo de onde ele morou antes de mudar para o Rio.

“Casamos lá, sem a família dela saber. O pai dela era coronel do Exército, gaúcho, meio que racista. Comprei um vestidinho branco, bordado, e duas alianças de prata. Já se vão 38 anos.”

“Sou meio romântico, sempre fui. Não é forçado. Quando morava em [Senhor do] Bonfim [na Bahia], com três anos, eu tinha uma namorada. Não era namoro, né, mas eu ia à casa dela, ficava segurando a mãozinha. Sempre me apaixonei. Por isso que é ‘Sabor de Amor’, eu estava apaixonado.”

Se Hyldon conseguiu retomar uma carreira ativa, o mesmo não aconteceu com o amigo Cassiano, que ele compara com Belchior. “Acho que ele se desiludiu muito com o mercado, com as coisas. Vive recluso. Tive notícias de ele tá cheio de música nova para gravar, mas fica arredio. Acha que as pessoas não o respeitam, vão querer passar a perna nele. Fica difícil negociar.”

Hyldon diz que considera Cassiano um dos maiores compositores do Brasil, e faz uma homenagem ao amigo em todo show. “É uma história de querer sumir, não querer saber de nada. E, ao mesmo tempo, está produzindo, o que é um contraste. Mas ninguém consegue saber onde está o Cassiano. Acho que nem ele mesmo sabe.”

Aos 70, Hyldon celebra o bom momento, a primeira dose da vacina, e segue em alta produtividade. Fez 150 lives no Instagram durante a pandemia. “Graças a Deus vivo feliz, não sou ganancioso, não fico correndo atrás de dinheiro. Fico preocupado em fazer uma música nova, bonita, que as pessoas gostem. Ganhei até uma netinha.”

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