Paulo Mendes da Rocha doou seu acervo para Portugal meses antes de morrer

Em entrevista à Folha, arquiteto disse que doação era uma manifestação de liberdade e que esperava viver para sempre

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São Paulo

Sob protestos, um acervo de 8.800 itens de Paulo Mendes da Rocha, que morreu na madrugada deste domingo (23), aos 92 anos, saiu do Brasil para ser integrado ao acervo da Casa da Arquitectura em setembro de 2020.

A escolha da instituição portuguesa foi feita pelo próprio arquiteto, vencedor do Pritzker em 2006, o principal prêmio de arquitetura no mundo. "A relação do Paulo com a Casa já é longa. Ele poderia ter escolhido qualquer instituição do mundo", disse o arquiteto Nuno Sampaio, diretor-executivo do museu. Mendes da Rocha recebeu o título de sócio honorário da Casa da Arquitectura em 2018.

Dentro das caixas que foram para Portugal estavam cerca de 6.300 desenhos feitos à mão, 3.000 fotografias e slides, 300 publicações e um conjunto de maquetes feitas pelo próprio arquiteto. No total, os itens correspondem a mais de 320 projetos.

“Antes de mais nada, gostaria que vissem a doação que fiz como uma manifestação da liberdade que tenho de fazer o que eu quiser”, disse o arquiteto, em entrevista à Folha.

Professores, pesquisadores e arquitetos reclamaram que a saída do acervo do Brasil poderia dificultar pesquisas acadêmicas e seria mais um capítulo de uma certa erosão cultural em curso desde o fim do Ministério da Cultura na gestão de Jair Bolsonaro.

A própria Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, onde Mendes da Rocha foi professor por quase 40 anos, disse que soube da decisão com “grande pesar”. A FAU abriu negociações para abrigar os objetos, mas foi preterida.

“Tenho seis filhos. Se, por alguma razão, eu resolver dar um presente para um e não para os outros, serão cinco reclamações”, disse Mendes da Rocha, que assina projetos conhecidos no país, como o do Sesc 24 de Maio e o da reforma da Pinacoteca, ambos em São Paulo, por exemplo. “Compreendo muito bem quem acha que eu fiz mal. Como disse, eu respeito a liberdade —a minha e a de todos.”

Muitas das objeções também apontavam uma possível contradição entre a opção do arquiteto por Portugal e a sua defesa constante de um pensamento anticolonialista.

“A divisão dos países da América Latina é uma fantasia e uma consequência grotesca da política colonial”, disse ele em seu escritório, defendendo mais acordos de cooperação e de integração entre as nações do continente.

Nos bastidores e pelos corredores da própria Faculdade de Arquitetura, pesquisadores também apontaram um suposto ressentimento do ex-professor como uma das causas para que ele não tenha entregue o seu acervo à universidade.

Mendes da Rocha se tornou docente da FAU em 1961, a convite do arquiteto Vilanova Artigas, que desenhou o próprio prédio da escola. Em 1969, com a publicação do AI-5, ele foi cassado e afastado de suas funções pelo regime militar, retornando à USP s em 1980, com a promulgação da Lei da Anistia —só que, dessa vez, na função de auxiliar de ensino.

O afastamento e a volta à sala de aula motivaram uma carta de demissão, na qual o professor critica o seu retorno à faculdade no cargo mais baixo da carreira docente. Mendes da Rocha seguiu na FAU e, nos anos seguintes, acabou se tornando livre-docente. Ele se aposentou em 1998.

Quando falou dessa época, o arquiteto trocou as frases longas e as explicações contextualizadas por respostas curtas. “A história não é feita de gracinhas”, disse. “Ela é difícil, dolorosa e deve servir de exemplo para que não se repitam desastres tão estúpidos”, acrescentou ele, ao se referir à ditadura. Mas negou em seguida qualquer rusga ou ressentimento em relação à USP ou à FAU.

A doação do acervo, porém, não gerou só críticas. Cerca de 250 nomes ligados à arquitetura publicaram uma carta pública em que apoiam o gesto e classificam a opção por Portugal como um esforço para salvaguardar a obra de um dos principais arquitetos brasileiros e uma forma de resistência contra o que chamam de desmonte da cultura no Brasil.

“Não queria transformar essa conversa em um debate de política cultural. Tenho a impressão de que qualquer país precisa ter interesse em guardar seus acervos. Caso contrário, ele não tem memória”, afirmou Mendes da Rocha.

Mendes da Rocha disse acreditar que a doação é mais um passo de sua carreira —e não o capítulo final. “Eu me sinto muito bem. Acho que, tendo nascido, não tenho outra alternativa senão viver”, disse. “Espero viver para sempre.”

Se os olhos para o futuro eram os de um projetista, a mirada ao passado e para sua própria obra não contavam com tanto encantamento. “Não tenho orgulho de nenhum projeto que fiz. Não trabalho para ter orgulho, nunca acho que fiz o melhor. Fiz o melhor que pude.”

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