Descrição de chapéu

Paulo Mendes da Rocha praticou o otimismo do desespero até o seu fim

Arquiteto tinha consciência de estarmos na rota do desastre, o que, de alguma forma, dava sentido ao seu trabalho

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Daniele Pisani

Crítico de arquitetura, autor de 'Paulo Mendes da Rocha - Obra Completa'

Há uma frase que, nos últimos anos, Paulo Mendes da Rocha repetia com frequência e quase sempre da mesma forma. Depois de falar sobre o destino humano —a morte— terminava inevitavelmente por concluir com as palavras “estamos aqui para frutificar”.

Entendia desse modo ressaltar a dimensão que ele atribuía ao fazer humano. Não encontro outro tema, a não ser este, sobre o qual falar e através do qual me despedir dele, neste momento que sempre me recusei a admitir ser possível.

Creio que o complexo posicionamento de Mendes da Rocha frente ao mundo possa em geral ser reconduzido a um certo otimismo do desespero. Com a sua inteligência, era afligido pelos problemas do nosso mundo, e não era difícil o sentir afirmar que “estamos na rota do desastre”.

Mas esta consciência não o fazia se render. Ao contrário, era justamente aquela consciência que, de alguma forma, dava sentido ao seu trabalho. Os problemas existiam, e deveriam ser resolvidos. E era justamente a isso que servia a arquitetura, que ele não entendia como uma profissão, mas como um discurso, capaz enquanto tal de articular o pensamento de um modo diverso do corrente.

Fazer arquitetura era portanto pensar, era um modo peculiar de pensar. Mas era um pensar sempre animado pela intenção de responder às grandes, inquietantes interrogações por ele individuadas como decisivas e imperativas.

O cerne ao redor do qual giravam estas interrogações, não acaso, representa também o cerne do seu discurso sobre a arquitetura –o homem, a humanidade, e a sua relação com a natureza, isto é, com o planeta em que vivemos.

A angústia frente à destruição da natureza pelo homem se unia nele à rejeição de todo tipo de solução fácil. Para ele, por assim dizer, o paraíso foi sempre perdido, e não se tratava portanto de restabelecer uma situação de fácil equilíbrio com a natureza que, se um dia existiu, certamente não existia mais.

Não era possível retornar a um estado natural; se poderia porém reinventar a natureza. Era possível e até necessário “construir” uma natureza que não existia ao natural. E era exatamente este o dever da arquitetura. Num mundo que, sem nem ao menos o saber, estava sendo levado à “rota do desastre”, o único modo de fazer arquitetura que não fosse evasivo consistia de fato no ato de a conceber como o veículo fundamental de uma contínua, incansável transformação da natureza. A cada devastação, deveríamos contrapor o modelo de uma alteração virtuosa.

Cada obra, no final das contas, age sobre o terreno e o modifica. E uma arquitetura digna desse nome antecipa, transformando a cidade ou o território, formas diversas de convivência humana. É possível perceber tudo isto caminhando pela sua obra.

Se no Museu Brasileiro de Escultura e Ecologia, o MuBE, que infelizmente desde o início foi separado do entorno com grades, se pode perceber quase fisicamente o lado intrinsecamente territorial da arquitetura, no Sesc 24 de Maio nos encontramos em vez disso diante de uma espécie de experimento sobre o modo com que as pessoas podem estar juntas mesmo no problemático centro de São Paulo.

A emergir são traços diversos mas complementares da sua obra. E, se um dia tivessem de ser removidas as grades do MuBE, resultaria ainda mais claro que, no final das contas, essas duas obras aparentemente tão diversas não são na realidade senão exemplos de um mesmo esforço de elaborar exemplos de urbanidade, de cidade adensada.

Transformar a superfície daquilo que é o nosso único planeta e o fazer juntos, tendo como objetivo a vida em comum –diz e repete a obra de Mendes da Rocha–, é o único dever digno de uma arquitetura que não seja uma mesquinha fuga dos problemas que nos esperam.

Em relação a isso, todo o resto –ainda que também ele imprescindível– fica em segundo plano –a extraordinária elegância de sua obra, a sua notável sensibilidade espacial, a competência e ainda mais a inventividade das soluções estruturais que tem demonstrado ao longo dos anos.

Fazia tempo que Mendes da Rocha estava lidando com a sua futura morte. Não tinha medo de falar a respeito. Era demasiado sábio para não considerar que, na sua idade, não podia mais se permitir ignorar aquilo que sabia que, cedo ou tarde, chegaria.

Parece que a sua afirmação segundo a qual “estamos aqui para frutificar” constitua o êxito dessa sua conscientização. Leio nela uma esperança simplesmente humana, a de que alguma coisa reste dele. Mas leio nela também a aceitação do fato que, daqui em diante, cabe aos outros assumirem o peso dos problemas que ele passou a vida tentando apontar como inexoráveis. Nos cabe sermos o seu fruto.

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