Marilene Felinto apresenta o fervor das 'Mulheres de Tijucopapo' a nova geração

Autora se reaproxima do mercado editorial e traz maior clássico de sua carreira de volta em grande estilo

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São Paulo

“Eu penso muito para ver se de comparação em comparação eu enxergo melhor”, diz a narradora de “As Mulheres de Tijucopapo” em mais de um momento do livro —marcado por uma retórica insistente, que se reafirma o tempo todo, e pela teimosia em enfrentar ventos desfavoráveis.

Essa descrição vale para a protagonista, Rísia, e para o próprio trajeto do romance. A estreia de Marilene Felinto na ficção, também maior clássico de sua carreira, volta em grande estilo às livrarias —menos de dois anos depois de a autora lamentar, em entrevistas e em sua estrepitosa participação na Flip, suas desilusões com o mercado editorial.

O que mudou? “Conheci editoras novas com editores mais jovens”, diz ela. “Eu tive sérios problemas com os editores que eu conheci, da minha geração, com raras exceções. Tinham uma postura mercadológica de rolo compressor, passavam por cima de você e você era totalmente esmagado.”

A nova edição de “Tijucopapo” —a quinta, depois de publicada por Paz e Terra, 34, Record e numa edição independente da autora— sai pela editora Ubu, dirigida por Florencia Ferrari, de 44 anos.

Para reapresentar o livro a uma nova geração, Ferrari prepara uma tiragem de 4.000 exemplares com preciosa fortuna crítica, número alto para padrões de romance nacional, mas “conservador para o sucesso que eu gostaria que ele tivesse”, diz a editora.

Felinto também tem trabalhado com a estreante editora Fósforo, capitaneada por Fernanda Diamant, 41, e Rita Mattar, 34. A escritora destaca a abordagem distinta das casas recém-surgidas com seus autores, que se reflete em remunerações mais justas e numa postura “mais arejada e humana”.

A escritora Marilene Felinto
A escritora Marilene Felinto - Daniel Barbosa/Divulgação

“E são mulheres”, completa. “As únicas vezes em que publiquei com algum conforto foram com mulheres. Na 34, quando a editora era a Beatriz Bracher, e na Record com a Luciana Villas-Boas. Infelizmente, isso conta.”

Aos 63 anos, é evidente que a Marilene Felinto de agora também é outra em comparação com a que escreveu o livro em 1982, época em que terminava a faculdade e “era uma ninguém, uma louca, uma desencontrada”. O que se refletiu num livro encharcado de um frescor de juventude.

“Estou indo de volta para Tijucopapo para ver se sei”, escreve Rísia, a narradora. “Foi lá que minha mãe nasceu. Tive de vir-me embora. Vou lá para ver se sei por que posso ser cruel e não amar assim como odeio. Vou para Tijucopapo ver se sei por que sou pobre. Depois vou pintar a revolução.”

O trecho ajuda a iluminar uma história difícil de explicar. A protagonista, que migra quase criança de Pernambuco para São Paulo, trilha um caminho sôfrego —parte real, parte filosófico— em direção ao lugar de onde veio sua mãe.

Existiu uma Tejucupapo real naquela região, conta a pesquisadora Leila Lehnen no posfácio, um vilarejo onde se organizou no século 17 uma resistência de mulheres às invasões holandesas. Com sucesso.

E, como também comenta Lehnen, é um livro que foge da classificação fácil —é narrativa de viagem, mas também romance de formação, romance de denúncia, romance epistolar.

Quem também foge é Marilene Felinto. Vale lembrar um trecho da narração de Rísia, com similaridades inequívocas com a autora. “Ainda tentam me definir, os filhos da mãe. Sem sequer me conhecerem. Eu desconto com pedras. Jamais vou admitir que me definam.”

Felinto sempre se mostrou resistente a ser definida por correntes literárias ou marcadores de identidade. “Porque isso fatalmente seria colado à minha literatura”, afirma. “E, para mim, literatura sempre foi uma outra coisa, que não as categorias em que você pode encaixar o texto de alguém.”

“Nunca foi uma coisa de eu me colocar como negra, como pobre. Embora isso apareça no livro, está claro. A pobreza até mais do que a coisa racial. Eu achava estranho, até hoje acho estranho. Sou totalmente favorável às lutas todas, e se essas categorias são importantes para que elas se fortaleçam, eu sou totalmente favorável. Mas quando se trata de literatura, para mim, é uma coisa que está num outro espaço, que não esse.”

“As Mulheres de Tijucopapo” causou seu primeiro impacto num contexto de ditadura agonizante, quando o futuro estava aberto em incertezas.

A história —que num resumo grosseiro mostra como a protagonista transforma a memória de seus traumas em força individual e coletiva— talvez ganhe conotações mais urgentes num país prostrado pela pandemia e pressionado por um governo, de novo, com tintas autoritárias.

“Eu resisti muito que o livro fosse publicado neste ano, nesse clima de baixo astral, de mortes, de genocídio. Mas a Florencia insistiu que era importante que fosse lançado exatamente neste ano.”

As transformações radicais pelas quais o Brasil passava na redemocratização, diz Felinto, podem ter se impregnado inconscientemente em “Tijucopapo” —uma narrativa que explode em pensamentos e emoções desenfreadas de uma narradora em carne-viva.

Assim como cativou um Otavio Frias Filho (1957-2018) que abraçou o livro enquanto equilibrava aulas na Universidade de São Paulo com a Direção de Redação deste jornal —para o qual convidou Felinto, sua colega de classe, a ser colunista, um posto que ela retomou em 2019—, pode também inspirar uma nova geração de jovens. “É isso que escuto dizer, que o livro tem essa potência”, assente ela. “Talvez. Tomara.”

As Mulheres de Tijucopapo

  • Preço R$ 59,90 (240 págs.)
  • Autor Marilene Felinto
  • Editora Ubu
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