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'Murambi' mostra como Ruanda virou tabuleiro de xadrez de genocidas

Em livro, Boubacar Boris Diop cumpre missão de salvar genocídio do esquecimento e revelar cumplicidade da França

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Murambi, o Livro das Ossadas

  • Preço R$ 69,90 (224 págs.); R$ 48,90 (ebook)
  • Autoria Boubacar Boris Diop
  • Editora Carambaia
  • Tradução Monica Stahel

Murambi era uma escola técnica na província de Gikongoro, onde 50 mil pessoas foram massacradas durante o genocídio de Ruanda.

Para os efetivos da Operação Turquesa, a força multilateral criada pelas Nações Unidas para pôr um ponto final no conflito, Murambi era só mais uma cena do crime e um lugar adequado para um campo de futebol. Para Boubacar Boris Diop, ela concentrava todas as dinâmicas do último genocídio do século 20. Ela é o palco do seu “Livro das Ossadas”, recém-publicado pela editora Carambaia.

O autor senegalês traz vida a uma multitude de personagens que se cruzam antes, durante e depois dos acontecimentos. Faustin Gasana era um membro da Hutu Power, o movimento extremista que aspirava ao domínio do grupo hutu sobre um país purificado da presença dos tutsi. Coronel Perrin oficiava no Exército francês, que foi muito mais do que um observador do conflito, e Cornelius Uwimana regressou ao país depois de um longo exílio para descobrir que seu pai organizou o massacre de Murambi e matou sua mãe, irmãos e irmãs.

Cada personagem conta um pedaço da história do genocídio. Cabe ao leitor juntar as peças para entender os acontecimentos em toda a sua complexidade.

A construção de um romance com entradas múltiplas, conduzido por diferentes personagens, foi a solução narrativa encontrada pelo autor para produzir o livro em circunstâncias extraordinárias. Sua obra parte de uma viagem pioneira de autores africanos a Ruanda no calor do pós-genocídio, em 1998.

Em entrevistas, Diop conta que pretendia manter uma distância analítica, mas acabou assolado pela experiência. Ele lembra ter aprendido com Elie Wiesel que o Holocausto não é a morte de 6 milhões de pessoas, mas a morte de cada uma delas, umas atrás das outras, a conta gotas. A individualização, a seu ver, era a única forma de combater o projeto genocida depois do fato consumado.

Se o autor joga livremente com os personagens, suas experiências e temporalidades, ele também oferece ao leitor uma interpretação clara e elucidativa do genocídio.

Para tanto, ele regressa frequentemente a momentos-chave, como a revolução de 1959, que dá início a uma dupla transição, a independência de Ruanda, concluída em 1962, e a tomada de poder da maioria hutu. Nesses anos, 10 mil tutsis acabaram massacrados e outros 300 mil foram exilados, num processo que é lembrado como o primórdio da tragédia ocorrida em 1994.

A ideia de que o genocídio se inscreve numa sequência histórica, que hoje é senso comum, era muito contestada na época em que Diop escreveu a sua obra.

A França foi a primeira a endossar a tese de que o genocídio era um terrível acesso de raiva, uma reação infernal ao atentado contra o avião do presidente Juvénal Habyarimana, abatido por dois mísseis. Com a “tese dos dois genocídios”, que descrevia uma matança descontrolada entre hutus e tutsis, Paris tentava emplacar uma interpretação que ocultaria o seu envolvimento decisivo no genocídio.

A partir dos anos 1990, o presidente François Mitterrand, obcecado com a ideia de preservar a influência francesa na região dos Grandes Lagos, se torna um aliado incondicional do governo hutu contra os rebeldes tutsis sediados na Uganda anglo-saxônica.

Em múltiplas ocasiões amplamente documentadas, os franceses ignoraram os alertas emitidos por instâncias internacionais sobre o risco iminente de uma tentativa de limpeza étnica. Talvez ainda mais macabro, a embaixada francesa em Kigali abrigou a fatídica reunião que selou a composição do governo interino que sucedeu a Habyarimana e supervisionou os massacres.

Vinte anos de historiografia desmentiram a “teoria dos dois genocídios”, que se sustenta em clichês racistas, e mostraram que o massacre conduzido pelos hutus fora meticulosamente planejado por elites instaladas há décadas, com o aval implícito das potências coloniais e neocoloniais.

Os trabalhos seminais de Gérard Prunier, por exemplo, mostram como os colonialistas belgas exploraram e exacerbaram tensões culturais, contribuindo decisivamente para a construção do mito da identidade superior dos tutsi nos anos 1930 para legitimar o seu controle sobre os ruandeses.

Décadas de engenharia étnica e de manipulação política fizeram desse massacre um momento extraordinário. Mais de 800 mil pessoas morreram entre abril e julho. Para comparação, Treblinka, o mais sofisticado campo de exterminação nazista, demorou um ano para atingir o mesmo número de mortes.

Diop completa as histórias dos seus personagens com uma descrição meticulosa desse projeto. Ele explica como os 26 mil quilômetros quadrados do Ruanda, controlados por uma das malhas administrativas mais sofisticadas da África, foram transformados no tabuleiro de xadrez dos genocidas.

O Exército e as milícias hutu, ajudadas pela população, ouviam a emblemática estação de rádio das Mil Colinas, responsável por propagar a campanha de ódio entre as massas, para saberem aonde deviam se dirigir para cumprir a sua cota diária de assassinatos.

A precisão com que são descritas a universalidade do modus operandi e a organização dos massacres sugerem que Diop estava numa missão —salvar a história do genocídio, que ele temia mais que tudo ser esquecida.

O autor estava no sentido certo da história. Ele vem do movimento pan-africanista, forjado na luta anticolonial, e a preservação da memória da maior tragédia do século da descolonização era a última batalha da sua geração.

Seu trabalho ganhou nova atualidade com a decisão de Emmanuel Macron, em 2019, de criar uma comissão para examinar as relações bilaterais entre França e Ruanda de 1990 a 1994. Presidida pelo historiador Vincent Duclert, ela entregou um relatório final em março.

Figura tutelar da França moderna, Mitterrand é descrito como um homem macabro e maquiavélico, cúmplice e negacionista. No final de maio, Macron se deslocou a Kigali para reconhecer as responsabilidades da França, abrindo um novo ciclo na história do genocídio. Um ciclo iniciado décadas antes pelo livro de Diop, que além de uma proeza literária, é um artefato histórico.

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