Curta brasileiro que ganhou prêmio em Cannes pode virar longa-metragem, diz diretora

'Céu de Agosto', de Jasmin Tenucci, recebeu uma menção especial no festival francês de cinema

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São Paulo

Queimadas ocorridas na fronteira entre Paraguai e Mato Grosso do Sul, somadas a uma frente fria, levaram o céu de São Paulo a uma escuridão, em agosto de 2019. Naquela mesma tarde, o fenômeno causou um efeito oposto em Jasmin Tenucci. Ao ser arrebatada por aquela densa camada de nuvens e fumaça cinzentas, a mente da diretora se iluminou e ela decidiu escrever.

Daí surgiu o roteiro de “Céu de Agosto”, filme que acaba de garantir a ela uma menção especial no Festival de Cannes —a Palma de Ouro da seção foi para a chinesa Tang Yi. Ele foi um dos três curtas-metragens brasileiros exibidos no evento cinematográfico, o mais importante do mundo, ao lado de um par de longas nacionais e outras coproduções.

Em seus 16 minutos de duração, “Céu de Agosto” acompanha uma enfermeira grávida que, durante um chá de bebê na laje, é encoberta pela escuridão que toma o céu de assalto. A cena é digna de filme de apocalipse, e a ansiedade que recai sobre Lucia logo a impele para uma igreja neopentecostal.

Foi realmente por acaso que o filme aconteceu. Tenucci tinha acabado de conseguir verba para um outro curta quando teve a ideia para “Céu de Agosto”. Ela então persuadiu seus financiadores a reinvestir o dinheiro no novo projeto —e a decisão, depois da passagem pela costa francesa, não poderia ter sido mais acertada.

“Ter sido selecionada já havia sido uma honra enorme. Foi realmente uma surpresa e a minha primeira alegria foi saber que poderia exibir o filme na tela grande”, diz Tenucci, num momento em que muitos cineastas têm limitado suas obras às telinhas da TV e do streaming por causa da pandemia. O Festival de Cannes, que chegou a ser cancelado no ano passado, pôde nesta edição reunir seus espectadores em salas de cinema.

“Eu achei que jamais veria ‘Céu de Agosto’ na tela grande, e ir para Cannes significava ainda ter a certeza de que o filme poderia ser muito mais visto, discutido, pensado. Só por isso já foi um privilégio enorme. Eu gosto de tomar cuidado com isso porque tem muito filme brasileiro excepcional que não entra nesses festivais por diversas razões, mas, claro, é uma honra.”

Tenucci estava nos Estados Unidos às vésperas do evento e voou de lá, já 100% imunizada, diretamente para a França. Sua equipe, no entanto, estava no Brasil, sem vacina, mas conseguiu o que ela chama de um “passe de urgência” para viajar e participar do festival presencialmente. Lá, a cada 48 horas, era necessário fazer teste para a Covid-19.

Durante a passagem por Cannes, Tenucci arquitetou, junto com as equipes de outras produções brasileiras em exibição, um protesto após a sessão de “O Marinheiro das Montanhas”, do cearense Karim Aïnouz. “Brasil: 530 mil mortos. Fora, gângster genocida”, dizia a faixa empunhada pelo grupo.

“A gente tentou fazer o máximo de barulho lá. Qualquer atenção ajuda, faz uma pressão”, diz Tenucci sobre o ato, emendando uma crítica às dificuldades de se financiar um filme sob a gestão de Jair Bolsonaro, cujo governo vem travando a liberação de verbas para o audiovisual e patrulhando os temas abordados em projetos feitos com recursos públicos.

“Céu de Agosto” fala um pouco sobre esse sentimento de frustração e paralisação. O apocalipse que se forma no céu de São Paulo em cena nada tem a ver com o fim dos tempos bíblico. Ele representa, Tenucci diz, um sentimento que se apoderava de todo o Brasil à época da escrita do roteiro.

“Uma fumaça negra tinha viajado milhares de quilômetros e tomado o céu da maior metrópole do país. Isso me pareceu muito simbólico, era um sentimento de um Brasil que já naquela época passava por dias escuros. A minha personagem se move, nesse caso em direção à igreja, num momento em que nós todos estávamos paralisados de tensão.”

Formada pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, a diretora espera agora que a láurea em Cannes a ajude a tirar seus próximos dois projetos, seus primeiros longas, do papel. Um deles fala sobre “uma mulher em busca da menor baleia do mundo”.

O outro é uma expansão do universo de 16 minutos de “Céu de Agosto”, este produzido pelas brasileiras AmorDoch e Substância Filmes, com recursos também estrangeiros. A ideia é reaproveitar premissa e elementos vistos no curta premiado em Cannes, mas criar uma nova trama a partir deles. No cerne do roteiro estará o relacionamento de duas mulheres, uma que está entrando na igreja e outra, saindo.

Religiosidade sempre foi um tema que interessou Tenucci. Antes de “Céu de Agosto”, ela desenvolveu pesquisa sobre o tema no Brasil, principalmente sobre a crescente presença das igrejas neopentecostais na sociedade.

“A população que pertence a essas igrejas hoje é muito grande e quem está fora entende muito pouco. E eu acho que o cinema também a representa de uma maneira que muitas vezes me incomoda. A gente não consegue olhar para essas igrejas de maneira horizontal, discutir e dialogar com isso”, diz a diretora, que não é religiosa.

Segundo ela, existe um certo elitismo entre boa parte da população que, também por razões históricas, vê de forma negativa e rasa essa parcela de fé evangélica. A próxima parada de “Céu de Agosto” é na mostra competitiva do Festival Internacional de Curtas Metragens de São Paulo - Curta Kinoforum, que começa no dia 19 do mês que vem.​

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