Descrição de chapéu Cinema mostra de cinema

Festival de Locarno rompe jejum pandêmico em edição marcada por diversidade

Evento está de volta com reflexões sobre multiplicidade de olhares e exigência de comprovação de vacina

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Mariana Queen Nwabasili
Locarno (Suíça)

O cinema está de volta. A frase estampada no breve teaser apresentado antes das sessões dos 209 filmes, entre longas e curtas-metragens, que compõem a programação da 74ª edição do Festival Internacional de Locarno, relizado na Suíça até o próximo dia 14, é um evidente comentário em defesa das atividades presenciais do cinema e de seus eventos num mundo quase pós-pandêmico, sobretudo na Europa.

Depois de dois anos de jejum devido às exigências de distanciamento social desde o estopim da pandemia de Covid-19, o evento que ocorre em uma cidade fronteiriça com a Itália, primeiro epicentro da pandemia no continente europeu, está de volta num formato presencial mais meticuloso e tecnológico para cumprir protocolos sanitários.

A retirada de ingressos para as sessões é totalmente online, feita por meio do site ou do aplicativo do festival. O uso de máscaras é obrigatório em todos os espaços de exibição dos filmes. E os espectadores devem apresentar certificados de vacinação ou de resultado negativo para a Covid-19, com validade de 48 horas, para entrar na maioria dos ambientes.

Uma parceria com um grande centro de testagem local permite ao público ter acesso facilitado aos testes, que têm seus resultados enviados por SMS e email. A depender do tipo de credenciamento do espectador, não há custo, e quem quiser evitar filas pode agendar um horário online para o teste.

Apesar dos esforços para o retorno ao normal, a disponibilização de filmes online se mantém como tendência desde o ano passado, quando a conjuntura levou o festival a uma edição híbrida —e não exatamente oficial— com sessões online e em cinemas da cidade.

Neste ano, 21 filmes de duas mostras —Cineasti del Presente e Open Doors Shorts— podem ser vistos numa plataforma online. Os ingressos são limitados e pagos.

“Obvimente, o futuro do festival vai em direção a uma digitalização, mas qualquer inteligência artificial ou algorítimo é muito estúpido diante dos filmes que presenciamos aqui. A digitalização é o nosso futuro enquanto nos faz aprender a conservar esse grandioso e esplêndido evento. Nós nunca nos renderemos”, disse Marco Solari, presidente do festival, na sessão de abertura, nesta quarta-feira, que contou com a estreia oficial do filme "Beckett".

Sintomático e paradoxalmente ao discurso de Solari, "Beckett" é uma produção da Netflix dirigida pelo italiano Ferdinando Cito Filomarino e estrelada pelo americano John David Washington.

No filme, a personagem-título passa por desventuras perigosas e hostis, sendo um estrangeiro não branco de férias numa Grécia cindida pela máfia.

“Quando penso em Beckett, penso em um sobrevivente. A ideia de sobrevivência é muito pessoal para mim. E acho que a sobrevivência também é o porquê de nós estarmos aqui nesta noite, a sobrevivência da sala de cinema”, disse Washington, na cerimônia de abertura.

A sessão na qual o longa foi apresentado explicitou os desafios práticos da volta ao normal em termos de público. Era possível ver várias dezenas de cadeiras vazias no grande centro de eventos Fevi Associazione, onde a exibição aconteceu.

Sob chuva fina, algumas poucas pessoas também assistiram à sessão de abertura na Piazza Grande, praça central da cidade que durante o festival abriga uma das maiores telas de cinema ao ar livre do mundo, capaz de ser contemplada por até 8.000 pessoas em períodos e edições pré-pandêmicas.

A expectativa e percepção são de que o público está chegando aos poucos à cidade, que gradualmente vai ficando mais cheia e agitada, com aglomerações de pessoas sem máscaras nas pequenas ruas principalmente à noite.

Multiplicidade de olhares

Junto à defesa da volta aos cinemas, a diversidade e o respeito a questões culturais e de gênero no setor também são temas defendidos neste ano pelos organizadores.

“O festival é um lugar capaz de hospedar e gerar outras visões. Sempre pôs a liberdade de expressão em seu núcleo, celebrando a dignidade de homens e mulheres e rejeitando o abuso de poder”, diz o texto de Solari no catálogo impresso.

Nesse sentido, Locarno conta com uma mudança significativa em seu principal núcleo. Giona Nazzaro está à frente da direção artística do evento pela primeira vez, substituindo Lili Hinstin. Nazzaro é conhecido por ser um grande conhecedor de filmes de ação e chega ao posto alinhado com o que reconhece ser uma necessidade de multiplicidade de olhares no júri e nos filmes selecionados.

“Tentamos garantir que os lineups dos jurados refletissem as possibilidades e complexidades no centro das mudanças em curso na indústria cinematográfica. O resultado são olhares jovens —não apenas em termos de idade— e capazes de atuar como vetores de novas formas de pensar em praticamente todos os cantos do mundo”, afirma o diretor.

Entretanto, o comitê de seleção dos filmes desta edição foi composto majoritariamente por europeus, com nove pessoas ao todo. Já o júri da principal competição —a categoria internacional— é um pouco mais diverso apenas porque traz, entre os cinco membros, duas pessoas americanas, Eliza Hittman e Kevin Jerome Everson, e um africano da Costa do Marfim, Philippe Lacôte.

“Locarno é um festival inclusivo, e espero que os filmes mostrem isso por eles mesmos”, acrescenta Nazzaro, que prefere não opinar sobre quais obras na programação poderiam exemplificar esse movimento.

Entre os 17 longas da competição internacional, há 11 filmes exclusivamente europeus e cinco de produção híbrida com países de fora do eixo Europa-Estados Unidos. O destaque é o franco-nigeriano "Juju Stories", dos africanos Michael Omonua, C. J. Obasi e Abba Makama, que retratam três diferentes histórias passadas na cidade de Lagos, na Nigéria.

Com relação aos 40 curtas-metragens da mostra Pardi di Domani, que abriga competições nacional e internacional, dez são produções asiáticas ou latino-americanas. O Brasil marca presença com "A Máquina Infernal", de Francis Vogner dos Reis, descrito como uma fábula sobre a classe operária, e "Fantasma Neon", de Leonardo Martinelli, sobre um motoboy.

É evidente que a programação desta edição também está valorizando abordagens multiculturais a partir da perspectiva dos cineastas europeus.

O choque cultural de ou com imigrantes é tema estruturante não só de "Beckett", mas também de "The Legionnaire", filme italiano dirigido por Hleb Papou, e do longa espanhol "The Odd-Job Men", de Neus Ballus. Nesse sentido, se destaca também "The New Gospel", produção suíço-alemã dirigida por Milo Rau que põe em debate a representação de um Jesus Cristo negro na contemporaneidade.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.