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Televisão

Tarcísio Meira tinha a cara de São Paulo antes de ser louvado pelo país

Ator se destacou desde papéis heroicos e épicos até personagens envolvidos com questões políticas e econômicas

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A força da telenovela para unificar o Brasil ficou evidente numa cena emocionante da vida real. Tarcísio Meira estava com José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, então diretor da TV Globo, na procissão marítima do Senhor dos Navegantes, tradicional em Salvador.

Eram cerca de 30 mil pessoas entoando hinos religiosos, até que a turma da embarcação ao lado à do ator percebeu a sua presença e começou a cantar "irmãos, é preciso ter coragem". De barco em barco, o coro foi aumentando até que, naquele 1º de janeiro de 1971, as cerca de 3.000 embarcações passaram a louvar, em vez de Deus, o galã da novela.

Ao lado da mulher, Glória Menezes, Tarcísio caiu em prantos, sob uma chuva de flores atiradas em sua direção. Boni também chorou de emoção. Ele havia contratado, em 1968, o casal, já com uma carreira de sucesso na Tupi e na Excelsior, para integrar o projeto de fazer da TV Globo uma rede nacional, construída fundamentalmente a partir da paixão dos brasileiros por telenovelas.

O ator interpretava à ocasião o papel de João Coragem, protagonista da novela das oito "Irmãos Coragem", de Janete Clair. Era a primeira novela de destaque da Globo a usar uma linguagem nacional, abordando temas da realidade brasileira, depois de uma era dominada por textos estrangeiros e enredos distantes do cotidiano do país.

A identificação do público passou a ser considerada essencial para a consolidação de uma rede nacional —até então, as emissoras eram locais, cada uma com uma programação diferente. Uma novela transmitida nacionalmente e com a cara do Brasil, com a qual o público se identificasse, era estratégica para os anunciantes e para a ditadura militar, que buscava a unificação do território para facilitar o seu controle.

Tudo isso e muito mais está por trás do rosto –lindo– de Tarcísio Meira. O galã que arrebatava corações com seus beijos apaixonados era também aquele que lutava contra a opressão e pela reforma agrária em "Irmãos Coragem". Era de deixar, obviamente por motivos distintos, telespectadoras e censores descabelados.

Os cortes eram feitos capítulo por capítulo, cena por cena, na tentativa de evitar qualquer mensagem que desagradasse ao poder. Nos tantos relatórios secretos produzidos pela ditadura sobre a TV, a análise era de que as telenovelas tinham forte potencial de influência sobre a opinião da população, o que poderia ser estratégico para o governo, mas que estavam sob forte "infiltração comunista", representando, portanto, perigo.

A partir dos anos 1970, a novela, que se tornaria o principal produto da indústria cultural brasileira, embaralharia as paixões em um jogo de interesses entre TV, ditadores e autores, quase todos de esquerda —além de Janete Clair, seu marido, Dias Gomes, e outros, como Lauro César Muniz, foram pilares da teledramaturgia nacional consolidada pela Globo. Que galãs como Tarcísio Meira fossem louvados, estava perfeito, mas todos queriam controlar a realidade brasileira que ele representava.

Tarcísio, portanto, não só protagonizou a primeira telenovela diária brasileira, a "2-5499 - Ocupado", ao lado de Glória Menezes, em 1963 na TV Excelsior, como se tornou a cara desse que seria o mais poderoso produto cultural do país.

Doutor em teledramaturgia pela Universidade de São Paulo, Mauro Alencar ressalta que Tarcísio se destacou numa série de papéis heroicos, míticos e épicos, e que, com novelas de Lauro César Muniz, mudou sua chave interpretativa para personagens envolvidos com questões políticas e econômicas, como Antônio Dias, de "Escalada", de 1975, e Renato Villar, de "Roda de Fogo", de 1986.

"O galã era apenas o suporte natural para intensas interpretações das variadas composições que fundamentaram a telenovela brasileira", diz Alencar. "Foi um dos maiores nomes a criar no público o envolvimento emocional com a ficção diária e a transformar em identidade nacional."

A conquista do Brasil começaria por São Paulo, onde o ator nasceu. Boni, quando o contratou para a Globo, o queria justamente em razão da identificação com o público paulista, o principal mercado publicitário do país. A emissora precisava deixar de ser carioca para avançar no território nacional, e nada melhor do que um galã com sotaque paulista. Mas ele logo seria louvado por Salvador e por todo o país.

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