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Audiolivro resgata travestis mafiosas que comandaram a prostituição em São Paulo

Chico Felitti conta vida de Andréa de Mayo, Cris Negão e Jacqueline Blábláblá, discutindo o que era ser LGBT no passado

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Ribeirão Preto

Jacqueline Blábláblá, Andréa de Mayo e Cristiane Jordan, a Cris Negão, são nomes que o leitor provavelmente não conhece. Eles nunca estiveram, afinal, estampados nas páginas deste ou de outros jornais, de livros de história ou até de inquéritos da polícia e processos judiciais.

Não é difícil, porém, que o leitor já tenha caminhado pelas mesmas ruas do centro de São Paulo onde elas comandavam a prostituição de travestis, entre as décadas de 1970 e 2000.

Era uma época em que a prostituição —ou a viração, como elas chamavam o ofício entre si, inspiradas pelo jargão “se virar”— era um mercado oculto, escondido atrás de hotéis de uma estrela ou pensões que, de pensões e hotéis, só tinham as placas.

Idolatradas e temidas ao mesmo tempo, Jacqueline, Andréa e Cris eram populares, mas, depois de mortas, passaram a cair no esquecimento, não só de pessoas que não fazem parte da comunidade LGBTQIA+, mas até das travestis que hoje “se viram” nas mesmas ruas em que o trio reinava.

No que depender de Chico Felitti, colunista deste jornal, isso está prestes a mudar. Numa escrita marcada pela oralidade, Felitti narra a trajetória do trio no audiolivro “Rainhas da Noite”, que chega na próxima quarta-feira, dia 29, ao catálogo da Storytel, um serviço de streaming dedicado a histórias em áudio.

A narração é da atriz Renata Carvalho, conhecida por ter protagonizado a peça “O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Rainha do Céu”, que provocou a ira de grupos religiosos e virou caso de Justiça ao retratar Jesus como uma mulher transexual.

“Sempre tive curiosidade pelo nome da Jacqueline, o Blábláblá, que é um nome maravilhoso. Eu ouvia muito amigas travestis das antigas falarem sobre Jacqueline, 'a babadeira', e toda sua geração, cujas histórias não chegaram até a gente”, diz Felitti.

O jornalista Chico Felitti, autor de 'Rainhas da Noite' - Karime Xavier/Folhapress

O audiolivro é mais uma de suas empreitadas entre histórias que só existem no boca a boca. Ele já se debruçou, por exemplo, sobre a vida de personalidades como Ricardo Correa da Silva —que muitos conheciam como Fofão da Augusta—, uma lenda urbana que o jornalista humanizou em “Ricardo e Vânia”, seu primeiro livro, publicado em 2019.

É também o caso de outros trabalhos seus, como “A Casa”, em que investiga como João de Deus foi de astro a condenado por estupros em série, e “Mulher Maravilha”, uma biografia que desconstrói os mitos que Elke Maravilha criou em torno de si —este também um audiolivro da Storytel, mas que em outubro chega às livrarias pela Todavia.

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Ricardo Correa da Silva, o Fofão da Augusta, que também teve sua trajetória retratada por Chico Felitti no livro 'Ricardo e Vânia' - Chico Felitti/Folhapress

Em “Rainhas da Noite”, porém, Felitti trava uma luta contra o que sociólogos começam a chamar de violência arquival —o apagamento de histórias de pessoas que vivem à margem da sociedade. Sem idolatria. As rainhas, afinal, não foram santas. Andréa, por exemplo, não escondia os assassinatos que cometeu —ou que dizia ter cometido.

Jacqueline, assassinada a tiros no mesmo dia em que Ayrton Senna morreu, tinha o costume de “mandar um doce” —ou seja, mandar dar uma surra— nas travestis que recusavam trabalhar em seu prostíbulo. Cris, por sua vez, chegou a beber o sangue de um ladrão que ela matou ao sofrer uma tentativa de assalto —ou pelo menos é o que diz a lenda.

Nem por isso elas merecem ter suas histórias apagadas, diz Felitti. Afinal, o próprio livro questiona, quantos empresários, artistas, celebridades existem de atitudes tão reprováveis quanto têm suas vidas idolatradas na mídia?

“Este livro é uma ode à existência de pessoas que não tinham direito à vida. Não estou dizendo que foram pessoas boas ou ruins, mas que foram extraordinárias por dizerem não ao mundo horrível, de morte e violência, que esperava por elas”, diz. “A imensa maioria das pessoas que retrato morreu —não de morte natural, de idade, mas de violência.”

Ao contar os feitos de Jacqueline, Andréa e Cris, Felitti também constrói uma narrativa sobre o que significava ser LGBTQIA+ na São Paulo das décadas passadas, onde, por mais que não estivesse determinado no Código Penal, fugir à heteronormatividade levava à cadeia.

Era uma época em que transexuais, travestis e transformistas não eram aceitos nem dentro da própria comunidade, cuja sigla, GLS, incluía até os simpatizantes, mas deixava de fora pessoas T, que eram expulsas dos bares e boates gays que explodiram a partir da década de 1970 no centro paulistano.

Evidentemente, é uma história triste, que lembra como a imprensa tratou o HIV como uma sentença de morte, como um “câncer gay” ou um “castigo de Deus”. Mas é também, Felitti faz questão de frisar, uma história que não se restringe à tristeza, à tragédia e à morte, temas que, até pouco tempo atrás, eram no mainstream a única ótica sob a qual integrantes da comunidade LGBTQIA+ eram retratados.

“É importante que as bichas jovens saibam que a gente teve travestis mafiosas 50 anos atrás, que andavam de limusine, mandavam o comércio abrir e fechar quando quisessem e davam golpes imobiliários. A vida é muito difícil para quem foge à normatividade, mas também há histórias impressionantes, que precisam ser contadas”, diz.

Rainhas da Noite

  • Quando Disponível na próxima quarta-feira (29)
  • Autoria Chico Felitti
  • Produção Storytel
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