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'Diários de Otsoga' nos leva ao mundo caótico da Covid em filme invertido

Já vimos audácias de Miguel Gomes, mas neste longa, codirigido por Maureen Fazendeiro, o experimentalismo é radical

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Diários de Otsoga

  • Quando 03 de novembro
  • Onde Mostra Internacional de São Paulo (online e presencial)
  • Produção 2021; Portugal; França
  • Direção Maureen Fazendeiro e Miguel Gomes

Otsoga, do "Diários de Otsoga", não é propriamente um lugar. É agosto escrito de trás para frente. E isso porque o diário —e por conseguinte o filme— se dá de trás para diante, começando no dia 22 e regredindo até o início do mês.

Já vimos muitas audácias de Miguel Gomes, em "Aquele Querido Mês de Agosto" ou em "As Mil e Uma Noites", mas aqui, neste filme codirigido por sua companheira, a documentarista Maureen Fazendeiro, digamos que o experimentalismo é radical.

Há um terceiro envolvido, a corroteirista Mariana Ricardo, de quem veio a ideia de juntar três jovens isolados numa casa, sem nada para fazer —ideia, se bem entendi, que tirou de um livro de Cesare Pavese.

Todos eles e mais os atores se envolvem nessa aventura em que, compreensivelmente, haverá momentos de espanto, de dúvida e questionamento —entre os atores e equipe, claro, já que os impasses são esperáveis.

Já no dia, sabemos que o centro da empreitada é a montagem de um borboletário. Vemos mesmo a primeira borboleta surgir. É o fim, ou o princípio, pois a cronologia está invertida. Ou melhor, "Otsoga" nos leva a um mundo às avessas. O mundo da Covid-19, do isolamento como forma de evitar o mal.

O filme se abre —e a temporada se fecha—, portanto, com a solitária borboleta nascendo em confinamento, como os dois rapazes e a moça. Como, a rigor, a equipe —pequena— que trabalha no filme.

Mas essa redução ao mínimo parece também evocar outra redução, a de um Portugal confinado em si mesmo desde o fim de seu império colonial. Império que cultivou o ócio (como Gomes mostrou em seu "Tabu"). De lá para cá as coisas mudaram um tanto. E, em vez de criar um pequeno crocodilo (mas eles crescem) como animal de estimação, agora a natureza se manifesta de outra maneira. Borboletas são o inverso de crocodilos –voam leves, vulneráveis, desprovidas de agressividade.

Algo permanece –o gosto pelo ócio, pelo vazio. Ele não decorre apenas do confinamento. Esses jovens parecem filhos do velho império. Os gestos parecem quase sempre desprovidos de sentido, quando vêm deles.

Mais tarde —ou seja, dias antes— veremos essa piscina de água suja sendo lavada pelos empregados. Eles surgem de tempos em tempos, aliás, executando algum trabalho, consertando um trator, cozinhando.

Assim, o nada a fazer é tão seletivo quanto era o ócio dos ocupantes brancos na África. Okay, estamos em agosto, mês de férias na Europa, mas não férias para todos. Essa temporada que começa com festa, com tédio, desocupação, parece indicar um destino nacional, na visão de Gomes, Fazendeiro e Ricardo.

Não à toa, por vezes eles têm de explicar o filme aos atores atônitos. E não à toa ficamos sem saber se certas cenas partem dos atores ou dos personagens, como aquela em que a atriz se recusa a fazer uma cena de beijo (temor da pandemia).

Mas é o vazio dos gestos que chama mais intensamente a atenção –o correr dos dias é carregado de situações aleatórias. O que é um passeio da atriz num trator empurrado pelos funcionários? Ou mesmo a quase frenética montagem de um borboletário que será abandonado em seguida?

Pode ser uma metáfora de um país onde, ao que parece, tudo corre bem (mesmo a Covid não atingiu Portugal com a força que chegou a outros países). Pode ser uma metáfora da existência também, com seus movimentos frenéticos, apaixonados, que levam, no final, a nada. Tudo está em aberto no correr do tempo contrário que nos propõe "Otsoga". Tempo que corre fácil sob nossos olhos, atraídos pelas imagens e seu enigma.

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