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'Memoria', na Mostra de SP, é primeiro Apichatpong rodado fora da Tailândia

Tilda Swinton interpreta personagem que imerge na paisagem colombiana e mostra humanos e natureza como um só corpo

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Cannes (França)

De uma hora para a outra, o diretor tailandês Apichatpong "Joe" Weerasethakul começou a ouvir estrondos, baques fortes que se repetiam algumas vezes em episódios de cinco minutos, geralmente pela manhã.

A dificuldade de comunicar aos outros algo que acontecia apenas em sua cabeça serviu de base para seu novo longa-metragem "Memoria", que dividiu o Prêmio do Júri do Festival de Cannes deste ano com "Ha'Berech", ou o joelho de Ahed, do israelense Nadav Lapid, e faz parte da Mostra de Cinema de São Paulo.

"Essa minha frustração com a impossibilidade de expressar o que ouvia levou à reflexão sobre como tirar uma ideia da nossa cabeça e a transformar em cinema", disse ele em entrevista na França, durante o festival.

Cena de "Memória", de Apichatpong Weerasethakul
A atriz Tilda Swinton em cena de "Memoria", de Apichatpong Weerasethakul - Divulgação

Em seu primeiro trabalho rodado fora da Tailândia, Joe acompanha a jornada de Jéssica, vivida pela atriz escocesa Tilda Swinton, pelas florestas e montanhas da Colômbia. A personagem sofre do mesmo mal que atormentou o diretor, chamado pelos médicos de síndrome da cabeça explosiva.

Como Joe, Jéssica tem insônia, se interroga sobre o significado dos episódios sonoros e se esforça para reproduzir em ondas sintetizadas o que escuta internamente, com a ajuda de um técnico de áudio que se transforma em um dos vários mistérios de "Memoria".

A personagem tem pontos de contato também com a autobiografia da atriz, que atravessava um momento de luto. A Jéssica, que perdeu o marido, Tilda Swinton diz ter emprestado sua forma de responder às perdas –"manter um pé na vida e outro num estado de conexão".

Em entrevista também na cidade francesa, a atriz diz que o clima místico do filme foi amplificado pela atmosfera colombiana. "Assim que chegamos, senti o impacto de quando li Gabriel García Márquez na adolescência, do sentimento de que não há fronteiras para o fantástico. Acho que essa liberdade deixou Joe confortável."

O cineasta é conhecido e premiado por narrativas não lineares, em que real e irreal se sobrepõem, vivos e mortos convivem e atores amadores improvisam diálogos entre o documentário e a ficção. É o caso de "Tio Boonmee", que ganhou a Palma de Ouro em Cannes em 2010, "Mal dos Trópicos", que levou o Prêmio do Júri em 2004, e "Cemitério do Esplendor", que estreou também em Cannes em 2015, entre dezenas de trabalhos, geralmente de produção independente.

Swinton e Joe planejavam filmar juntos desde que se conheceram, há 17 anos, quando ela fez parte do júri que premiou "Mal dos Trópicos". Mas a atriz não conseguia se enxergar "encaixada" nas obras filmadas por ele sempre em tailandês, no seu país natal.

Daí veio o pacto de gravar onde ambos fossem estrangeiros. A Colômbia, que Joe conheceu em 2017, o atraiu imediatamente. "As nuvens que surgem e desaparecem rapidamente, as chuvas, deslizamentos, terremotos, há muito acontecendo com a natureza e com as pessoas, e sou apaixonado por isso", ele diz.

Não só o território físico era desconhecido, afirma o diretor. "Estava acostumado a controlar todos os detalhes. Na Colômbia, porém, não sei que tipos de tecido existem, se há uma cadeira melhor para compor um cenário. Precisei delegar tudo isso e foquei apenas o ritmo do filme."

A redução da responsabilidade o libertou das explosões. "Quando comecei a filmar, o som na minha cabeça desapareceu e passei a dormir profundamente", diz.

"Memoria" marca também uma nova fase em sua carreira, que deixa para trás o "cinema tailandês", afirma Joe. "É uma ilusão falar em cinema asiático, cinema chinês, na essência o que existe é essa técnica de contar histórias que todos compartilhamos."

No novo longa, ele quer mostrar que os humanos e a natureza são um só corpo. "Somos seres interconectados, que estão aqui apenas temporariamente; os elementos mudam o tempo todo e somos parte disso."

Segundo Swinton, que para filmar "Memoria" escureceu e deixou crescerem os cabelos e estudou espanhol, atuar em outra língua é um lembrete de que palavras podem ser obstáculos. "No cinema, é preciso deixar as imagens contarem a história."

O grande desafio, diz, foi o de imergir na paisagem colombiana e se tornar invisível. "Mais que a aparência de Jéssica, era a forma de se mover, sem deixar pegadas, sem fazer barulho nem dormir, a ausência de impacto que a integraria", conta.

A personagem, diz a dupla, não participa nem age; recebe, assiste, escuta. Funciona como um canal por onde escoam as lembranças dos outros. Numa das frases mais marcantes do filme, alguém pergunta a ela "por que você está chorando se estas não são as suas memórias?".

"Jéssica é o cinema", responde Joe.

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