Descrição de chapéu Dia da Consciência Negra

Lazzo, celebrado por novas gerações, uniu as pontas da música afro-baiana

De volta com disco, artista foi cantor do bloco Ilê Aiyê, tocou com Jimmy Cliff e compôs hits de Margareth Menezes

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São Paulo

"Vem vem, dia 20 de novembro/ Se todo dia é santo, neném/ Onda do mar me levou/ Me levou, mas hoje estou aqui", cantava Lazzo Matumbi em "Me Abraça e Me Beija", faixa de 1988 que refletia sobre a diáspora africana, citando o Dia da Consciência Negra. Mais de 30 anos depois, aquele reggae, que na voz de Margareth Menezes se tornou um clássico do Carnaval baiano, ainda ressoa nos pensamentos de seu compositor.

"Estava acontecendo um movimento no qual a gente tinha que pensar numa nova história, em reescrever, fazer uma nova história para a nossa gente", ele diz hoje, falando sobre o sonho de restaurar a autoestima da população negra espalhada pelo mundo. Se o sonho, na opinião dele, ainda não se tornou realidade, a contribuição de Lazzo para sua realização permanece mais viva hoje do que nunca.

homem negro de óculos escuros e careca sentado
O cantor, compositor e percussionista Lazzo Matumbi - Caio Lírio/Divulgação

Figura essencial da música afro-baiana, o cantor, compositor e percussionista —que foi diretor de bateria de escola de samba, cantor no seminal bloco Ilê Aiyê, músico em turnês de Jimmy Cliff e um dos pioneiros do reggae nacional em carreira solo— está relacionado a uma série de novidades.

Só neste ano, quando completa 40 anos de carreira solo, voltou a gravar um disco de inéditas, "Àjó", além de ser tema de um filme musical, "Abô", e homenageado no álbum "Ainda Atrás do Pôr do Sol", em que nomes como Luedji Luna, Anelis Assumpção, Curumin e Larissa Luz regravam faixas dele. Isso sem contar na participação que fez no disco "Matriz", que Pitty lançou em 2019, e em "O Azul e o Sol", do ex-vocalista da banda Eva, Saulo Fernandes, de 2017.

"Quando troco figurinhas com garotos novos, como Russo Passapusso [do BaianaSystem] ou Luedji Luna, sou convidado por Pitty, é a certeza de que estou na estrada certa, e de que minha ancestralidade não me abandonou. Isso pra mim é a continuidade da minha missão ancestral."

Essa missão começou ainda na infância, entre os tambores do candomblé de Mãe Menininha do Gantois, a escola de samba Juventude do Garcia e o canto de sua mãe no samba de roda vindo do Recôncavo Baiano. A partir dessas influências, foi fazendo ligações entre o soul americano de Marvin Gaye, o afrobeat nigeriano de Fela Kuti, o reggae jamaicano de Bob Marley e o samba carioca de Neguinho da Beija-Flor.

"Ficava encanado porque a timbragem de voz, mesmo sem entender a linguagem, era muito parecida. E isso me fazia uma conexão de que negros, seja da África, seja da América do Norte ou da América do Sul, tinham uma similaridade muito grande no canto. Era uma coisa meio que sofrida, mas um canto bonito que chamava a atenção. E eu ficava na comparação."

Lazzo conheceu os instrumentos de percussão no samba da Juventude do Garcia, onde logo se tornou diretor de bateria. "Saí do Garcia porque percebi que havia um discriminação com o cara que tocava percussão nos blocos das escolas de samba. Não eram tidos como músicos, mas sim como batuqueiros. E isso me batia porque estava ligado à visão que eu estava tendo com a questão racial, a discriminação racial."

Logo, montou um grupo de samba, para tocar em festas de aniversário e também se tornou cantor em um bloco de Carnaval, o Bafo de Jegue, que tocava frevo. "No meu grupo de samba, sempre entrávamos pela cozinha. As iguarias e bebidas que nos serviam eram diferentes dos convidados. Para eles, era uísque e cerveja. Para nós, batidas de coco. Minha observação era muito atenta."

De certa forma, toda a experiência com a música apenas refletia o racismo que saltava aos olhos de Lazzo. "Comecei a perceber essa relação em tudo. A coisa percussiva, que vem de África, era o fundão. O maestro Letieres Leite [morto recentemente, aos 61 anos] fez a diferença nesse sentido. Colocou o que chamavam de cozinha na sala de visitas, fez dela o elemento principal na Orkestra Rumpilezz."

Toda essa vivência encontrou sentido na cabeça dele quando amigos dançarinos o convidaram, em 1974, para conhecer o bloco Ilê Aiyê. "Lazzo, tem um bloco que sai pra defender a negrada, é só a negrada", ele recorda do que ouviu. Ressaltando indumentárias africanas, tocando um samba, como diz, "mais ralentado", o Ilê Aiyê foi um marco de autoestima para a comunidade negra e para todo o Carnaval baiano.

Na mesma época, outros movimentos de afirmação da autoestima negra se espalhavam pelo mundo. Dos Estados Unidos —e também do Brasil—, vinha o "black is beautiful". Da Jamaica, o reggae. Da Nigéria, o pan-africanismo do afrobeat. Pela fama como cantor no Bafo do Jegue, Lazzo se tornou vocalista e um dos líderes do Ilê Aiyê entre 1978 e 1981, quando deixou o bloco.

"Era um levante de autoestima. ‘Sou bonito do jeito que sou’. Mas quando eu sabia que a nossa sociedade pegava exatamente pela questão folclórica, eu tinha medo de ser folclorizado", diz, lembrando que deixou o bloco porque tinha ideias divergentes para o futuro. "[Queria] escrever uma nova história. Minha ideia era ser bloco de Carnaval, partido político, ter cabeças pensantes. Decidi dar minha contribuição de outras maneiras."

Quando Gilberto Gil e Jimmy Cliff tocaram para uma multidão no estádio da Fonte Nova, em Salvador, em 1980, Lazzo já enveredava para o reggae. Em 1981, gravou "Salve a Jamaica", tributo a Bob Marley, seminal na história do reggae brasileiro, e graças a ele foi a São Paulo gravar dois discos em carreira solo: "Viver, Sentir e Amar", de 1983, e "Filhos da Terra", de 1985, pela Pointer, selo da WEA Discos.

Participou também dos protestos pelas Diretas Já, que o fez lembrar da revolução que deixou em curso em Salvador. "Se aquilo ainda estivesse quente em Salvador, queria fazer parte. Era aquele velho sonho que eu tinha. Para o meu desencanto, quando cheguei aqui, tinha uma música chamada ‘Fricote’ batendo nos quatro cantos da cidade —e aquilo me frustrou muito."

Herdeiro do samba e com a cabeça no reggae, Lazzo via a célula rítmica criada pelo Olodum —o chamado samba-reggae— e reforçada pelos blocos afro se tornarem axé music quando bandas de baile, como a Banda Mel e a Banda Reflexos, começaram a cantar as músicas desses blocos com guitarras, baixos e amplificadores gigantes em trios elétricos.

"Fricote", sucesso de Luiz Caldas, trazia no refrão a frase "nêga do cabelo duro, que não gosta de pentear". "Falei 'caramba, deixei Salvador com uma revolução social e racial e de repente chego aqui e encontro uma música que descreve uma destruição da mulher negra'. Parte do movimento negro, as mulheres principalmente, bateram de frente, mas a sociedade em geral estava absorvendo. Não acreditava que estava acontecendo isso."

Por volta de 1987, convidado a fazer um show no Rio de Janeiro, ele viajou no avião ao lado de Jorge Portugal, que compunha para Maria Bethânia, entre outros. "Sentei ao lado dele e fui falando da minha indignação. Quando voltamos, eu o encontro na avenida Sete [de Setembro, em Salvador], e falo: ‘Parceiro, me desculpe, não teve papo. Desabafei um monte no teu ouvido’. E ele falou que daquele desabafo rolou uma música chamada ‘Alegria da Cidade’."

Mas Lazzo, que musicou a composição, ouviu de um produtor que aquela letra era "medíocre, idiota e babaca", e desistiu de gravá-la. "Eu já tinha visto racistas, mas eram atitudes subjetivas", lembra. "Me assustei. Coloquei a letra no bolso e falei 'não vou botar a música no disco, ela já cumpriu o papel dela, encontrou um racista na frente dela’. Duas semanas depois, a Margareth Menezes aparece me pedindo uma composição."

"Alegria da Cidade" saiu em 1988, no primeiro disco da cantora, mas não sem uma mudança de letra pela gravadora. Em vez de "eu sou o sol da Jamaica, eu sou a cor dessa cidade", o verso se transformou em "eu sou o som dessa cidade". Ironicamente, três anos depois, Daniela Mercury gravaria o sucesso "O Canto da Cidade", que imortalizou o verso "a cor dessa cidade sou eu".

Mas foi em 1988 que Lazzo gravou seu principal disco, "Atrás do Pôr do Sol", álbum que hoje não está nos serviços de streaming e mesmo na época não fez tanto sucesso, porque foi lançado por um selo pequeno, o independente Nosso Som, que fechou pouco tempo depois. Com participação de Gilberto Gil e Carlinhos Brown, o disco conecta a África diaspórica que floresceu na cabeça de Lazzo, com teclados no estilo Stevie Wonder, cuíca e baixos de reggae.

"Me Abraça e Me Beija", maior hit do cantor —que só ficou conhecida em 1991, na voz de Margareth Menezes e em parceria com Jimmy Cliff—, integrava o repertório ao lado de "Abolição", "Lamento" e "Mexa-se", uma versão em português de "Stir It Up", trazendo para a língua do Brasil a mensagem de Bob Marley. "Fiz a versão porque a galera estava se mexendo, dançando no Carnaval, mas não estava pensando. Aí vem a letra que fala justamente que tinha gente passando fome."

Ubunto, produtor musical por trás da homenagem com regravações das músicas de "Atrás do Pôr do Sol", diz que o disco tem uma sonoridade influente até hoje. "O que ele traz de timbres e de instrumentos é uma pegada de som que é referência para muito da música atual —tanto no reggae quanto no R&B e na música baiana em geral."

Do tempo que foi percussionista de Jimmy Cliff, Lazzo lembra uma história para ele exemplar de como um povo entende sua própria música. Era 1991, no Festival de Jazz de Montreux, e o palco abrigava uma jam session de lendas como Ray Charles, Chaka Khan, George Benson, Al Jarreau e Paul Jackson Jr., entre outros.

"Eles saíram do palco, deixou aquele vazio. No alto-falante disseram 'senhoras e senhores, não vão embora ainda porque temos a presença do Mr. Jimmy Cliff’. E eu, como brasileiro, vendo toda nossa história negra ser massacrada e oprimida, falei a um amigo, ‘e agora, como sobe no palco?’. Aí o baixista da banda me disse, ‘ei, Lazzo, relaxe meu irmão, a gente toca música original da Jamaica’. Aquilo me deu um tesão! A gente não tem esse tesão aqui no Brasil."

Hoje, Lazzo vê um país regredindo. "Quando me vi, um tempo atrás, achando que a gente tinha conquistado uma série de coisas com cotas, vendo a comunidade pobre e negra acessar a universidade, de repente muda tudo. Somos tratados como arrobas. É uma regressão. Me perguntam se eu acho que existe racismo. No Brasil ele é forte, só que vive incubado."

Mas ele não deixa de ser um sonhador. "Eu vou morrer chorando através do meu canto. Mas eu não vou parar de cantar, e de cantar chorando o meu canto de dor e o meu canto de alegria por sonhar que a gente pode transformar tudo isso."

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