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'Um Lugar ao Sol' duplica Cauã Reymond, mas corta metade da ousadia

Novela deve satisfazer o brasileiro cansado, depois de dois anos de pandemia e três de bolsonarismo

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Um Lugar ao Sol

  • Quando A partir de 8 de novembro
  • Onde TV Globo
  • Direção Maurício Farias e André Câmara

Todas as novelas são um pouco iguais. Mas algumas são mais iguais que outras.

Nem precisa falar em Ruth e Raquel. Gloria Perez pôs dois gêmeos no centro de "O Clone", João Emanuel Carneiro fez o mesmo em "Da Cor do Pecado", Gilberto Braga em "Paraíso Tropical". Não é déjà-vu. Como diria Carluxo, tem método.

Duas pessoas que calham de ser iguaizinhas, exceto pelas condições em que foram criadas, são matéria-prima de ouro para uma discussão sobre meritocracia e pertencimento que a nova "Um Lugar ao Sol" parece interessada em fazer.

A novela de Lícia Manzo, autora estreante no horário mais nobre da TV aberta que acabou responsável pela primeira novela das nove totalmente inédita da Globo em dois anos, dá aos irmãos perdidões a cara invejável de Cauã Reymond, um ator competente que no capítulo inicial ficou podado pela imposição de parecer 20 anos mais jovem.

Seus Christian e Renato, bem resolvidos por um ator maduro que segura sem esforço quase todo o episódio, foram separados na infância por uma situação corriqueira. O pai de ambos, exacerbado pelas tarefas domésticas, foi abordado por um ricaço em férias que puxou assunto numa pousada dizendo algo como "sou estéril, sabe onde tem uma criança dando sopa?".

A ideia de filhos desviados de pais miseráveis, aliás, grita "Amor de Mãe" —que parece ter passado há milênios, mas é tecnicamente a antecessora de "Um Lugar ao Sol". A cena em que o pai das crianças recusa levar dinheiro enquanto cede um dos filhos a um homem que nem conhece soa até como um comentário direto à outra novela, que abordava a venda de bebês.

A história segue adiante exatamente como você está pensando. O filho pobre, ao contrário dos prognósticos, sobrevive e vira um rapaz de fibra, enquanto o rico se afunda cada vez mais em excessos enfadonhos e crises existenciais que, curiosamente, têm um jeito de acometer sempre as mais altas elites.

O professor de Tonico Pereira, na melhor cena da estreia, cita Machado de Assis ao Cauã Reymond que parece um personagem de Dickens, que ainda não sonha possuir um irmão brindado com uma fortuna de Gatsby.

Da literatura à televisão, chavões sempre existiram por um motivo bem simples —são jeitos eficientes de prender o espectador num conflito que ele já conhece bem. A questão é o que acontece na página dois.

Pouco indica que a trama vá avançar muito fundo em qualquer debate de tintas mais políticas —Manzo, vale lembrar, é conhecida por oferecer "comfort food" de qualidade como "A Vida da Gente", do horário das seis. Aqui, a cena mais arriscada é aquela em que a personagem de Ana Beatriz Nogueira comenta como os jovens hoje em dia estão todos desmotivados.

Não que toda novela precise ter a mordacidade de "Vale Tudo" ou "Roda de Fogo", mas há um contraste com a virada mais provocativa ensaiada por "Amor de Mãe", que enchia a boca com discursos engajados e tinha um esforço de ambientação realista.

Este é um singular melodrama cidadão de bem que terá BaianaSystem toda noite na abertura ostentando a letra "Avisa o americano/ Eu não acredito no Obama/ Revolucionário, Guevara/ Conhece a liberdade sem olhar no dicionário".

Mas isso é extracampo. E é preciso sempre pontuar que analisar o primeiro capítulo de uma novela, ainda mais um que mal tira o foco dos dois protagonistas, é fatalmente injusto —é muito provável, por exemplo, que "Um Lugar ao Sol" ganhe interesse quando trouxer às telas atrizes preciosas como Andréa Beltrão e Denise Fraga, ambas em aparição raríssima num folhetim de longo prazo.

O que não vai ser possível dessa vez é a correção de rumo. "Um Lugar ao Sol" já está toda gravada, o que quer dizer que, se o público não gostar, adeus. Forçada pela pandemia, é uma inovação das mais perigosas.

Mas parece ser o único risco a que a novela se propôs. Por ora, nada indica que a obra queira atiçar o espectador por qualquer ingrediente picante. Mais provável que se dê por satisfeita em abraçar o brasileiro cansado, depois de um dia longo, dois anos de pandemia e três de bolsonarismo, e dizer —esquece tudo e vem ver novela.

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